15/04/10

O longo caminho de Joseph Ratzinger


Não é a primeira vez que Hans Küng critica o pontificado de Bento16, mas fá-lo com uma especial clareza e veemência numa «Carta aberta aos bispos católicos de todo o mundo», publicada hoje em El País.

Agora com 82 anos, começa por recordar que ele e Ratzinger foram os dois teólogos mais novos do Concílio Vaticano II, e descreve depois, detalhadamente, os motivos da desilusão que tem vindo a ter com a actuação do seu ex-colega na Universidade de Tübingen, que não só «relativiza os textos conciliares e os interpreta de forma retrógrada (…) como se situa expressamente contra o concílio ecuménico que, segundo o direito canónico, representa a autoridade suprema da Igreja católica».

Pararia por aqui aconselhando apenas mais uma leitura, não fosse dar-se o caso de me lembrar muito bem de Hans Küng e de Ratzinger durante o Vaticano II, não só pelo que escreveram e subscreveram (já lá chego), mas porque o primeiro esteve em Portugal em Abril de 1967, para fazer duas conferências, uma em Lisboa e outra no Porto sobre «A liberdade dentro da Igreja». Eram tão «revolucionárias» então as esperanças que sobravam do Concílio, encerrado dois anos antes, que os eventos em questão até meteram PIDE, identificação de matrículas de carros, entre as quais o de Mário Soares, etc. etc. (Escrevi em tempos algo sobre este assunto, que os mais interessados poderão ler aqui.)

Mas o que me interessa é chegar a Ratzinger, numa tentativa para que se entenda de onde ele vem, o que talvez permita uma melhor leitura da «desilusão de Hans Küng e uma menor «desculpa» para as posições que o papa hoje toma.


Como é sabido, houve uma clara retracção a nível de Roma nos anos que se seguiram ao encerramento do Vaticano II. Mas o que é menos conhecido é que existiu então um fortíssimo movimento de teólogos que não se conformaram com os factos e que reivindicaram o seu direito à liberdade de pensamento e de expressão dentro da Igreja. Exprimiram-no num documento publicado simultaneamente num jornal italiano e num outro alemão, em 16 de Dezembro de 1968: «Declaração sobre a liberdade e a função dos teólogos na Igreja». O texto chegou a 1.360 assinaturas, mas os promotores foram 38 – os principais e mais avançados teólogos ligados ao Concílio, entre os quais Hans Küng, claro, mas também… Joseph Ratzinger. Não é fácil encontrar o referido documento e coloquei-o por isso online.

Trata-se de um ataque muito violento contra a Congregação para a doutrina da fé, a mesma que foi presidida muito mais tarde por Ratzinger até ser eleito papa há cinco anos, com uma descrição pormenorizada de muitas exigências, quanto a modo de funcionamento e a direitos. Apenas um pequeno excerto para se ver o «tom»:

«Os teólogos abaixo-assinados vêem-se constrangidos e na obrigação de chamar abertamente e pela mais grave forma a atenção para o facto de a liberdade dos teólogos e da teologia ao serviço da Igreja, reconquistada pelo Segundo Concílio do Vaticano, não dever ser hoje posta em perigo. [...] Pretendemos que se respeite a nossa liberdade todas as vezes que, pela palavra ou por escrito, comunicamos as nossas convicções teológicas fundamentadas e o fazemos pela aplicação do melhor do nosso saber e da nossa consciência.»

Quando e porquê foram divergindo tanto estes dois compagnons de route, Küng e Ratzinger? Não sei. O primeiro disse há dois ou três anos que o actual papa se assustou muito com as repercussões do Maio de 68 e que terá iniciado aí a sua «involução». Hoje, enumera todos os retrocessos que identifica nos cinco anos de pontificado e termina a carta publicada em El País dizendo aos bispos do mundo inteiro que imponham a exigência de um novo Concílio – ciente, no entanto, que o papa tudo fará para o impedir, já que deve certamente «temer uma limitação do seu poder».

(Também publicado em Entre as brumas da memória)

8 comentários:

CN disse...

" menor «desculpa» para as posições que o papa hoje toma."

Talvez o Papa com mais credenciais e produção académica e agora tem de pedir desculpa.

Qual as posições em particular que precisam de especial desculpa, diga lá?

Porque tem uma organização de pedir desculpa pelas posições que toma e as pessoas aderem ou não?

CN disse...

Ah já agora, da Wikipedia:

Spanish Inquisition
Main article: Spanish Inquisition

it operated completely under royal authority, though staffed by secular clergy and orders, and independently of the Holy See.

CN disse...

Também já agora, sobre números de vítimas:

"between 1540 and 1794 tribunals in Lisbon, Porto, Coimbra and Évora resulted in the burning of 1,175 persons, the burning of another 633"

Sendo indesculpável (por parte do poder secular), comparando com as modernas chacinas efectuadas por repúblicas incluindo democracias...

Joana Lopes disse...

Aos seus dois últimos comentários, CN, nem respondo porque nada têm a ver com o meu texto.

Quanto ao primeiro: alguém disse que o papa tem de pedir «desculpas»? Não, embora ele o tenha já feito e várias vezes.
O que eu quis dizer, sim, e mantenho, é que, precisamente pelo seu passado e pela sua preparação, tinha obrigação de não ser hoje tão reaccionário (leia o que Kung escreveu e que eu assinaria por baixo, se quer o elenco de razões).
Penso o mesmo de todas as pessoas que foram de esquerda em jovens e se passam para ferozes militantes de direita - temos muitos neste país.

Miguel Serras Pereira disse...

CN,
leio no seu comentário: "Talvez o Papa com mais credenciais e produção académica e agora tem de pedir desculpa."…
O que é que as credenciais e produção académica têm a ver com o assunto? Um tirano letrado é menos tirânico por isso? A democracia é o poder dos mais credenciados academicamente?

Haveria outras questões, mas a Joana já respondeu, e bem, ao que valia a pena responder.

msp

maria disse...

Joana,

ainda a propósito: creio não estar muito longe da verdade se disser que Ratzinger inverteu marcha ao chegar a Roma.
Vai-se ascendendo no poder e inevitavelmente as cedências surgem.
Obviamente não conheço a pessoa do Papa para poder especular mais, mas manter uma atitude interpelativa como é a de Hans Küng exige uma firmeza de carácter muito grande.

Joana Lopes disse...

Pois, MC, não sei muito sobre a evolução cronológica deste papa, mas o que me parece importante é o ponto de partida e a triste realidade a que chegou.

CN disse...

msp

Agora o Papa é um tirano?

O que quis dizer é que as opiniões do Papa são fundamentadas com valor académico e como tal têm de ser refutadas com validade. Não é tipo "o conservador burro" a dizer "bacoradas".

No post acima diz um comentário sobre a questão do direito natural e democracia (e sem ICARs ao barulho). A questão é essencial e eu diria quase civilizacional. Tenho muito interesse (digamos, intelectual) sobre essa discussão. E não, não é para invalidar o processo democrático. Na verdade é para procurar a sua legitimidade.