24/05/10

Post-carta para um camarada entusiasta

Caro Miguel Serras Pereira,

Em termos sociais, sobretudo pelas opções governamentais quanto à distribuição da “austeridade”, a “coligação do tango” PS/PSD e os burocratas de Bruxelas merecem levar nas ventas não só com uma grande manifestação no próximo 29 como o que se lhe possa seguir, incluindo uma greve geral, ou mais se necessárias.


Só que nestas coisas, como ensinam alguns livros de alguns autores, há as condições objectivas e as outras, as subjectivas. E entre estas, inclui-se o efeito da manipulação, com a respectiva contrapartida da reacção de nojo. O PCP ao apropriar-se da manifestação da CGTP, dando-lhe abusivamente como acto de paternidade a sua extemporânea “moção de censura” (que em vez de uma pífia antecipação parlamentar-partidária à movimentação social, teria outro significado se fosse, antes, um eventual corolário político de acções de protesto patrocinadas pela CGTP), pode ter contribuído para alimentar o fervor sectário dentro das hostes partidárias e assim juntar umas tantas bandeiras carentes de vento mas, ao inverter a lógica sócio-política da contestação, num momento em que a decisão de luta ainda é fraca (basta lembrar que o 1º de Maio deste ano teve uma das mais fracas participações de sempre), não prestou um bom serviço à causa. Além do erro político em si, o da estreita manipulação partidária do sindicalismo, a confusão de agendas, a social e as partidárias, baralha mais que clarifica e mobiliza. Descodificado, o actual comportamento do PCP para com o sindicalismo, particularmente em relação à CGTP, é típico do voluntarismo sem horizontes que transmuta um partido político historicamente ligado à emancipação dos trabalhadores numa agremiação sindical extremista e com uma incontrolada pulsão hegemónica e unicista.

Não nos podemos esquecer que as pessoas que sofrem realmente com a crise precisam urgentemente de esperança que dê sentido e alimente a luta. O que passa por uma alternativa factível, colocado ao nível da recomposição do poder, perante o impacto do pessimismo e do inelutável. E à confusão de agendas junta-se o esmagamento sectário e oportunista por uma força partidária, o PCP, que nada acrescenta além do “não” e do hedonismo do caos, essa miragem semeadora dos amanhãs revolucionários que libertem a sociedade do garrote da escolha pelo voto democrático. E que, para mais, insistem em nos empurrarem para a exaltação referencial dos “paraísos” cubano, norte-coreano e chinês. Ou sonhar-se nostalgicamente com a “boa URSS” do tempo de Estaline.

Caro Miguel Serras Pereira,

Sei quanto és exigente, em política, em ideologia e, sobretudo, em cultura e diálogo. Juntas agora a qualidade dos ambiciosos, o que te agiganta. Vejo que acreditas que “a rua” ultrapasse e corrija os entorses provocados pelos manipuladores. Ou seja, que a maré social corrija o sectarismo dos que se julgam pré-donos da rua. Aqui e neste preciso momento? Pois bem, desejo-te a maior sorte que um céptico relativamente a frutos de manipulações, eu, te pode desejar.

17 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João,

como tu, considero que o controleirismo praticado pelo PCP, visando fazer da CGTP sua correia de transmissão, capitalizar em proveito do reforço da sua organização o descontentamento e a revolta populares, deve ser combatido por todos os que pensam que só ao reforço e a extensão da participação responsável da base e das formas da sua auto-organização podem garantir a defesa das conquistas ameaçadas e o avanço instituinte da vontade de justiça, de liberdade e igualdade democráticas.

Mas sem as manifestações de rua, sem as greves, sem intensificação da acção colectiva organizada, é mais difícil ainda o desenvolvimento da tomada de consciência pela gente comum da sua própria força e capacidades políticas. E se o PCP, com a cumplicidade da burocracias sindicais, se esforça por transformar os movimentos de protesto e reivindicação dos assalariados em mão de obra ao seu serviço, perpetuando a sua exploração e subalternização política, creio que devemos contestar as suas pretensões, não reconhecendo de direito, por assim dizer, a hegemonia de facto das suas directivas no movimento sindical e reclamando a democratização deste, praticando-a na medida das nossas forças nas condições presentes e em vista da sua superação… e assim por diante.

Esta discussão poderia e deveria continuar, e ser levada mais longe. O que são, de facto, os sindicatos existentes? Que transformações democráticas requerem? Que iniciativas podem promovê-las desde já? Como superar o esquema bolchevique da divisão entre acção política (superior, histórica, dirigente) e acção económica (auto-defensiva, quase reflexa, imediata, matéria-prima e/ou mão de obra a rentabilizar/explorar)?
Vejamos, pois, se o nosso debate se alarga um pouco mais, neste blogue e fora dele.
Vigoroso abraço democrático

miguel sp

miguel disse...

O que significa "uma alternativa factível, colocado ao nível da recomposição do poder, perante o impacto do pessimismo e do inelutável"?

De todo o seu texto, esta é a única frase que me interessa, porque sugere uma saída, uma ideia, um esboço de qualquer coisa. Como é que pensa essa "recomposição do poder"? Com que actores sociais? Por que meios? Contra quem e por quem, ou seria uma "recomposição do poder" em favor de "todos"?

Percebe-se pela leitura dos seus textos que alimenta um ódio de morte ao PCP. Em que medida é que essa ódio de estimação contribui para a a sua ideia de "recomposição do poder"? Isto é, nos seus planos de "recomposição do poder" o PCP é um dos actores principais ou deveria ser ostracizado no processo de "recomposição"? Como prevê lidar com um partido que diz ser "oportunista" (e com os restantes partidos) no processo de "recomposição do poder" e que, parece-me, se está na tintas para os kilobytes que o João Tunes acrescenta à Rede?

Gostava de ler sobre essa "alternativa factível", já que sobre o resto não concordo consigo numa só letra.

Ana Cristina Leonardo disse...

joão tunes, juro que não estou a meter-me consigo: mas será que o PCP ainda é algum perigo real para lhe dar assim tanta importância?

João Tunes disse...

Ao provocador "miguel": o que vc queria, lindo menino, aqui não há para dar nem para emprestar. Teria de pagar bem e antecipado, em dólares e por transferência a partir de um banco de Miami.

Para a Ana Cristina Leonardo: Anda a ler mal, cara senhora, eu não falei em “perigo real” relativamente ao PCP. Isso deve ter sido um sonho mau que lhe deu antes de lhe vir o habitual cansaço subitamente seguinte às suas embirrações. Quanto aos graus das importâncias, quer fazer cartilha para pautar toda a opinião na blogosfera? Faça-a que é para eu me borrifar nela.

João Tunes disse...

Miguel Serras Pereira,

Os teus tópicos sobre o sindicalismo interessam-me muito. O projecto da construção de um sindicalismo autónomo e de classe seria, a meu ver, o que de mais importante se podia e devia fazer para a renovação e revigoração da esquerda em Portugal. Estou nessa com quem for nessa.

Miguel Serras Pereira disse...

Claro, João - eu previa que fosses sensível às perguntas-pistas que deixei a título de exemplo. A grande dificuldade não é tanto encontramos respostas inteligentes - pois que estas, para o serem deveras na matéria que nos interessa, têm de vir de uma reflexão incorporada na experiência e na acção dos interessados. Mas todos podemos, à nossa volta, quotidianamente, ir sugerindo ideias e pontos de partida.
Reabraço

miguel

Cara Ana Cristina,
desculpe se me meto na sua troca de ideias com o João. O "perigo real" ligado à acção do PCP não é o da tomada do poder, através de um golpe de força, seguido da instauração de uma ditadura do tipo das que o "socialismo real" nos deu a conhecer. É o de constituir um obstáculo - um "obstáculo activo" - à emergência e debate de formas de organização e pensamento alternativas, que potenciem a defesa e a extensão da liberdade e igualdade democráticas, abrindo caminho a uma maneira diferente de nos governarmos a nós próprios entre iguais,e garantindo colectivamente também a autonomia de cada um, tanto no plano da política no sentido corrente, como ao nível - também politicamente decisivo, embora denegando assumir-se como tal - da actividade económica e da direcção da economia.

Cordiais saudações republicanas

msp

Ana Cristina Leonardo disse...

joão tunes, mas que mal disposto! Já a prever a coisa, eu esclareci que não me estava a meter consigo. A minha pergunta era absolutamente singela: é que vejo em portugal tanta gente a ocupar-se do tema PCP que, às vezes, me pergunto se sonhei ou se é mesmo verdade que o muro de berlim já caiu há uns anitos.
Uma adenda: quanto a cartilhas, só a do joão de deus, mesmo que digam que está ultrapassada.
(e em privado: lá por eu lhe ter dito que não era tão jovem como o João Tunes imaginava, também não é razão para me tratar por "minha senhora" - nem tanto ao mar nem tanto à terra)

Miguel, apesar de perceber o seu ponto, o que eu acho é que o pcp tem pouco ou nenhum "poder" tb. nos aspectos que refere. A verdade é que a esquerda anda baralhadíssima e a culpa não é do partido do cunhal. Vivemos uma época interessante e, como diz um provérbio chinês, não há nada pior do que viver numa época interressante. Ou como afirmou, mais próximo de nós, o Tom Waits, "estamos no meio de uma revolução e ninguém sabe de que lado vêm as pedras". Não me parece que nesta revolução, e venham as pedras de onde vierem, o pcp ainda seja dado ou achado.
E muito obrigada por se meter na conversa.

Miguel Serras Pereira disse...

Ana Cristina,
eu vejo mais contra-revolução do que o seu contrário: mais desigualdade, corrosão dos direitos de cidadania universais, ghettos, rarefacção do espaço público (os centros comerciais não têm, nem juridicamente falando, esse estatuto, e os condomínios têm arruamentos, mas excluem a rua), reforço das oligarquias, autismo de massa, expansão de uma concepção empresarial da existência individual, apologia da solução individual para os problemas sistémicos, precariedade económica e apatia política coroadas ou reequilibradas pelo endurecimento penal…

Quanto ao PCP - evidentemente em regressão, mas muitas vezes por más razões e não pela afirmação de propostas de transformação social alternativas orientadas para a autonomia de cidadãos animados pela vontade de se darem, deliberando e decidindo, leis e governo a si próprios -, mantenho a minha posição até que você me mostre alguma novidade significativa e marcante no plano político que eu tenha deixado passar.

Cordialmente

msp

Ana Cristina Leonardo disse...

acho que a revolução de que falava o tom waits era num sentido mais lato do que aquele que o miguel entendeu: a ida à lua foi uma revolução, os antibióticos foram uma revolução, a web foi uma revolução, etc.
quanto ao pcp, posso estar errada, mas não o creio: já passou à história.
e a história que aí vem, essa, não só não a conseguimos antecipar como parece galgar-nos à imagem de uma onda imparável.
que fazer? não faço ideia. e é precisamente esse não saber que torna a coisa interessante e, ao mesmo tempo, realmente assustadora.

João Tunes disse...

Não, camarada Ana Cristina Leonardo, não foi má disposição, foi apenas irritação. E grande. Não suporto predisposições para se pautarem temas e assuntos sobre que cada um entende abordar ou tratar, dando-lhe a importância que neles encontram. No fundo, fazer isso é praticar uma intrusão censória e desvalorizativa dos outros, na parte referente aos seus temas de interesse. Afinal, um tique autoritário. E estávamos bem arranjados se todos gostassem, cultivassem e só falassem de malmequeres. O autor é livre na sua escolha temática e só o pode ser assim. Quem lê, ou lhe interessa e eventualmente interage ou não ou então niet e passa à frente no tema, na conversa, no autor, no blogue. E a maior penalização deve ser a de se ficar a falar sozinho. Blogosfera com mestres-escola, mesmo que de jardins-escola João de Deus, não, obrigado.

Ana Cristina Leonardo disse...

ó camarada joão tunes, mas eu não o queria irritar, nem sobretudo limitar, homessa!, a sua liberdade para discutir o pcp, malmequeres, a cartilha de joão de deus ou o que mais lhe aprouver, do mourinho à conquista do cosmos. o que eu questionei foi a importância e a influência que o pcp terá ou não terá ainda na sociedade actual. quanto ao resto, não se irrite que não vale a pena. pelo menos comigo. até porque, na minha modesta opinião, no final "ao vencedor as batatas" como dizia o machado.

Anónimo disse...

MSP: Belíssima- curta,sintetica e perfomante- análise que realizaste, hoje,pelas 0, 17 horas.Grande passo em frente!E que coloca questões capitais para se tentar...organizar a revolta e a revolução.Niet

Miguel Serras Pereira disse...
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Miguel Serras Pereira disse...
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Miguel Serras Pereira disse...

Ana Cristina, sim, mas…
Senão ouça, por favor: essa história imparável que aí vem e não sabemos antecipar, galgados por ela, é - de extremo a extremo - criação humana, inclinação ou orientação de um caminho feito pelo andar (veja, se quiser, o meu post sobre o "hedonismo do caos" que o Ricardo escreveu a polemizar com o João: http://viasfacto.blogspot.com/2010/05/caminante-no-hay-camino-se-hace-camino.html ). E neste caminho teremos de continuar a andar como aqueles de quem a Sophia dizia que "navegavam sem o mapa que faziam", o que é, paradoxalmente, o contrário de andar ao acaso, como se tudo tanto fizesse ou nada fizesse de modo a poder fazer diferença, e o contrário também do abandono à deriva.

Quanto ao PCP. Num texto já bastante antigo, o Castoriadis dizia que um capitalista ou um homem de Estado ocidental e um dirigente ou ideólogo estalinistas poderiam divergir em tudo, mas concordando inabalavelmente sobre o seguinte ponto: o regime da URSS era o socialismo, e o socialismo era um regime como o que existia na URSS; a URSS abolira o capitalismo, e a abolição do capitalismo reproduziria a URSS. Ora, a natureza política persisstente e o modo de fazer política do PCP contribuem fortemente para manter a reprodução desta ideia, este recalcamento da vontade de fazer qualquer coisa de diferente, como se estivéssemos condenados a deixar as coisas correr como correm, e como se qualquer intervenção política radical no sentido de transformar o modo como somos governados, utilizados pelos aparelhos da actividade económica, só pudesse piorar as coisas.

A este propósito - como as caixas de comentários são pequenas - deixe-me remetê-la para o que escrevi sobre as condições de uma transformação democrática, "autonomista" se quiser, neste blogue e no post: http://viasfacto.blogspot.com/2010/05/mais-cest-une-revolte-non-sire-cest-une.html . E não, não é uma maneira de dizer a última palavra e dar os trâmites por findos - antes gostaria que fosse uma maneira de prosseguirmos a discussão e alargarmos o leque dos interlocutores.
Cordiais bons-dias

msp

Joana Lopes disse...

Acabei de dizer num outro sítio que não gosto de me meter em conversa de terceiros, mas não resisto: escapou-me algo, haverá aqui alguma diferença entre cérebros masculinos e femininos ou a Ana Cristina não negou nada do que estava escrito e quis apenas dizer, desde o início, que «há mais vida para além do PCP»?

Ana Cristina Leonardo disse...

Joana, muito obrigada