28/06/10

Hsi Hsuan-wou e Charles Reeve: "A China interessa-nos porque põe a questão social à escala da humanidade inteira". Um ensaio a traduzir

Jorge Valadas, que usa também o nome de Charles Reeve - e cujos ensaios recolhidos em A Memória e o Fogo (tradução e prefácio de Júlio Henriques, Lisboa, Letra Livre, 2008) foram objecto de uma bela recensão do nosso camarada Ricardo Noronha -  publicou em 2008, em colaboração, com Hsi Hsuan-wou um livro sobre o "modelo" ou "via" para a globalização da República Popular da China - Hsi Hsuan-wou e Charles Reeve, China blues. Voyage au pays de l'harmonie précaire (Paris, Gallimard, 2008), cuja leitura não seria muito exagerado declarar indispensável a uma reflexão política séria sobre os tempos que correm. Continuando a alimentar a esperança de que alguma editora da região portuguesa assegure a tradução e edição desta obra fundamental - redigida com simplicidade e exigência simultâneas, levantando menos dificuldades do que um artigo de jornal ao leitor não-especialista ou não particularmente informado sobre a história da China - aqui ficam meia-dúzia de linhas extraídas da apresentação que os dois autores fazem do seu trabalho.

Há mais de dez anos, publicávamos Bureaucratie, bagnes et business (Paris, L'insomniaque, 1997), com a capa ilustrada por uma fotografia do "grande reformador" Deng Xiaoping, manchada de caracteres chineses, a tinta vermelha, que significam: "Nem Imperadores nem Patrões!" (…) mostrávamos [então] o peso da História, o desenraizamento forçado de mais de cem milhões de camponeses à terra e a sua transformação em "proletários flutuantes", hoje conhecidos em chinês como mingongs, o início da conversão da velha classe burocrática numa classe de homens de negócios particularmente ávida e brutal, e a persistência de uma vasta rede de trabalhos forçados indispensáveis aos governantes para fazerem reinar o terror.
(…)
O nosso interesse pelo Império do Meio não data de hoje*. Remonta à época em que, para muitos, esse país figurava a construção de um futuro radioso. Recusando o logro dessa forma totalitária de ruptura com a sociedade tradicional, preferíamos apoiar os que se revoltavam , abalando já o sistema e assinalando os seus limites. O que na época parecia extremista tornou-se hoje uma banalidade para os especialistas da questão chinesa. A China do "socialismo de mercado" é um dos vectores da unificação mundial do capitalismo. A emigração chinesa, consequência da precarização dos trabalhadores chineses, é ela própria uma componente da "globalização" da mão-de-obra à escala mundial.
(…)
Não há notícia que hoje nos chegue da China que deixe de sublinhar as desigualdades entre as camadas sociais, como se estas fossem fenómenos especificamente chineses, sem relação com o nosso quotidiano familiar ou com a sobrevivência dos regimes que reinam no Ocidente. Para nós, a China não é um mundo separado. Por isso recusamos a ideia de "alteridade" defendida por alguns. A China interessa-nos porque põe a questão social à escala da humanidade inteira. No mundo do mercado globalizado, o caso chinês condiciona doravante o futuro do planeta. Um interlocutor lúcido, ele próprio chinês exilado em França, declarava-nos: "Quanto mais conheço os países ocidentais, melhor compreendo a China!" Pelo nosso lado, nós poderíamos dizer que, quanto mais conhecemos a China, melhor compreendemos o Ocidente.

*Charles Reeve é autor de O Tigre de Papel: sobre o desenvolvimento do capitalismo de Estado na China, Lisboa, Spartacus, 1975 [trad. port. de Le tigre de papier. Sur le développement du capitalisme en Chine (1949-1971), Paris, Spartacus, 1972]; Hsi Hsuan-wou é um dos autores de Révo. cul. dans la Chine pop. Anthologie de la presse des gardes rouges, Paris, 10/18, 1974.

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