22/07/10

Castoriadis sobre "a decisão política subjacente à economia capitalista"

O post sobre A Crise do Valor, que o nosso incomparável igual e camarada Ricardo Noronha aqui publicou, é, tanto pelo que diz como pela discussão a que deu origem, um contributo importante pelo facto de pôr em evidência não só os limites da "racionalidade económica", mas também e sobretudo a necessidade de pensarmos a economia, o seu funcionamento e organização, como aspecto de uma ordem institucional e política da sociedade subordinante e mais vasta, ainda quando as relações de poder e as representações que a articulam põem o primado do económico no posto de comando.
Acerca destes problemas, gostaria de deixar aqui alguns excertos de um escrito de Castoriadis de 1990 (Quelle démocratie?, em Figures du pensable. Les carrefours du labyrinthe VI, Paris, Seuil, 1999) que me parecem apontar para uma "crítica da economia política", ou uma repolitização explícita da esfera económica e do trabalho, cujas consequências políticas creio serem solidárias e, de certo modo, radicalizarem aquelas em que o Ricardo e os comentários do NF também apostam, ainda que faça da "impossibilidade de calcular o contributo de cada um para a produção global", não uma "novidade histórica no contexto do modo de produção do capitalismo", mas uma constante já presente bem antes da emergência do "imaterial" e das transformações mais recentes das formas e regimes do trabalho (De certo modo, é também a este propósito que NF faz notar ao Ricardo: "Quando se pressupõe que uma mercadoria tem um valor inerente e que esse valor advém do trabalho-tempo - medindo-se trabalho através da quantificação do tempo trabalhado no produto - nela incorporado estamos já no campo do ilusionismo capitalista. Neste sentido estrito, o capitalismo é um modo de produção tão 'espiritual' como material já que apropria o tempo através da sua redução à cronometria e o trabalho por via da sua abstracção e generalização").

Escreve Castoriadis: "(…) a economia lida (também) com 'quantidades' - e as 'quantidades' económicas não são propriamente 'quantidades': não são, de um modo geral, mensuráveis, porque não são inter-comparáveis. Tornam-se comparáveis convencionalmente (…) e retrospectivamente, ex posst, a partir do momento em que se instituem taxas de equivalência mais ou menos fixas, e sobretudo a partir do momento em que se institui a moeda. A moeda é o véu de pseudo-comparabilidade lançado sobre 'objectos' incomparáveis. Poderia ser elaborada uma comparabilidade teórica no interior de uma economia estática referindo todos os inputs necessários à produção a um só de entre eles, e, nomeadamente, por razões evidentes, ao tempo de trabalho (tal é, grosso modo, o ponto de vista dos clássicos, já desde Locke ou, em todo o caso, desde Smith e até Marx). Mesmo esta redução nada tem a ver com a realidade por múltiplas razões: o próprio trabalho não é homogéneo; existem recursos não reprodutíveis; por fim, as trocas fazem-se através de preços que ao mesmo tempo reflectem e realizam a repartição do excedente (e do produto em geral) entre trabalhadores e não-trabalhadores, do mesmo modo que entre os diversos grupos dos segundos, e essa repartição só marginalmente é determinada por 'factores económicos', sendo-o principalmente pela luta incessante e polimorfa entre as partes envolvidas"

Segue-se uma breve mas muito densa análise dos problemas de uma economia real e em transformação, da qual retomo apenas estes fragmentos deixando de lado a crítica da matematização e outras reflexões mais "técnicas" mobilizadas pela crítica interna da "ciência económica" proposta por Castoriadis, e que os interessados poderão reencontrar no capítulo do mesmo volume intitulado  "La 'rationalité' du capitalisme", como em numerosos outros textos:  "Mas (…) o problema a resolver (…) não é o de uma economia estática, mas o de uma economia em que há transformação técnica (e transformação dos 'gostos', quer dizer da composição da procura final). Ora, numa economia deste tipo, os coeficientes técnicos da produção, quer dizer as quantidades relativas de bens necessários à produção de um objecto dado, mudam com o tempo (…) [Por outro lado,] a transformação técnica não é simplesmente uma transformação da matriz dos coeficientes técnicos de produção e de procura final; é uma transformação do próprio espaço vectorial em que se tentasse inscrever essa matriz (…). Em termos simples, cada invenção de um novo produto, instrumento ou processo produtivo significa que se acrescentam novas dimensões ao espaço vectorial económico e que outras (não necessariamente 'correspondentes') são suprimidas.



(…)
Todo o edifício da pretensa 'ciência económica' assenta necessariamente na ideia de que seria possível uma imputação separada dos custos de produção (ou, o que vem a dar no mesmo, dos resultados da produção) às unidades e aos factores de produção. Mas esta imputação separada é, teoricamente, uma falácia completa. O produto global é o resultado da actividade global (e de toda a história anterior). O postulado de separabilidade - e a imputação correspondente de 'partes' do produto - é a tradução pseudo-teórica da instituição da apropriação privada (mistificação à qual o próprio Marx sucumbe). 
É o sistema económico tomado in toto (e com a sua história anterior) que produz, e não esta ou aquela fábrica, este ou aquele trabalhador. (…) É porque há apropriação privada que se traça uma fronteira contabilística indicando onde se detêm os custos 'próprios' (e os 'ganhos próprios') de uma firma; esta fronteira é, de outro ponto de vista, fictícia, que mais não seja porque existem (como hoje se descobre, em função dos problemas do meio ambiente) externalidades, custos suportados por outras coisas que não são a firma e ganhos peloss quais a firma nada fez. Para tomarmos um exemplo extremo mas eloquente: os 'custos' e os 'benefícios' da mesma fábrica, rigorosamente idêntica quanto às máquinas e ao pessoal, situada bacia do Ruhr e na Anatólia, não serão decerto os mesmos. E se é possível produzir como se produz numa fábrica moderna, é também porque existem as 'economias externas' de toda a história anterior e de todo o meio ambiente humano presente (…)
Toda a decisão de imputação é uma decisão política porque é ao mesmo tempo e ipso facto uma decisão de atribuição. A decisão política subjacente à economia capitalista, nunca explicitamente formulada, tem por conteúdo essencial reproduzir grosso modo a estrutura existente da repartição dos recursos e rendimentos (embora não exactamente os beneficiários individuais dessa repartição)".  

É por isso que: "Numa sociedade democrática, as decisões fundamentais de imputação e de atribuição deverão ser tomadas explicitamente e com conhecimento de causa". O que significa, nomeadamente, nos termos mais simples em que Castoriadis o formula noutro texto ("Mercado, Capitalismo, Democracia", em Uma Sociedade à Deriva, Lisboa, 90 Graus, 2006): "Numa sociedade autónoma (…) cabe aos consumidores decidirem que bens específicos devem ser produzidos para consumo, e isso por meio desse voto quotidiano que são as suas compras, valendo cada voto o mesmo que o de cada um dos outros. (…) Mas são [também] necessárias decisões de ordem geral sobre, pelo menos, dois pontos: a distribuição do produto (…) entre consumo e investimento, e a parte respectiva, no consumo global, do consumo privado e do consumo público - em suma, trata-se de saber qual é a parte que a sociedade quer consagrar à educação, aos transportes, à construção de monumentos ou a qualquer outro empreendimento público, e qual a parte que decide consagrar ao consumo dos indivíduos (…) Sobre estes pontos, será necessária uma decisão colectiva. 
Neste sentido (…) torna-se necessário que haja efectivamente um plano (…). Tem de poder dizer-se qualquer coisa como: se vocês decidirem que é necessário tal investimento, eis os níveis de consumo aproximativos com que poderão contar (…) Se querem investir mais, terão de consumir menos. Mas talvez possam consumir mais daqui a cinco anos. (…) Terão de decidir onde querem ir buscar os recursos que sãio afectados à educação. Querem obtê-los por meio de uma limitação do consumo privado? Ou do investimento, quer dizer: do crescimento futuro na área dos instrumentos de produção? (…) Todas estas alternativas deverão ser postas claramente e não podem ser resolvidas em termos razoáveis através do simples funcionamento das forças do mercado".

Ou seja, e retomo mais ou menos os termos de uma observação que já fiz comentando o post do Ricardo: a democratização ("socialista", se se quiser) da economia exige que a mão de obra, a força de trabalho e a actividade laboral requerida como socialmente necessária a cada um deixem de ser tratadas como uma mercadoria, passando a ser retribuídas mediante uma igualização radical dos salários e rendimentos. No que intervêm duas razões principais: 1. porque não há qualquer base racional ou razoável que permita calcular o contributo de cada um para o produto global, 2. para que, como na assembleia democrática, o voto de uns (no mercado) não pese mais do que o de outros.

0 comentários: