25/07/10

Fome de sábado à noite

Ontem à noite, a caminho de um jantar de anos. Há uma agitação no passeio, um fluxo de homens em redor de uma carrinha. Cada um tem um prato na mão. Alguns ficam ali junto à rua, conversando como se numa esplanada banal, outros correm para as escuridões dos prédios, encarquilhados pela vergonha ou talvez pela fome. Alguém ali distribui refeições quentes. A “sopa dos pobres”. E é tão mais bruto ver aquilo ali, rente à nossa pele, do que na TV. Ali, a informação sobre a pobreza que já corrói Lisboa não está confinada a uma caixinha que se pode mudar para outras paragens com um toque no comando. Ali, a fome habita gente que vemos durante o dia, que passa por nós na rua, sem um indício, sem um sinal demasiado evidente da miséria. Os “novos pobres”, como lhes chamam na tal caixa mágica. São estas pessoas que estão a cair para fora da vista do Estado, para fora das artérias mais movimentadas, dependentes da caridade de voluntários. É nestas pessoas que devíamos pensar sempre que ouvimos falar em mais cortes neste ou naquele apoio social. Ou quando vemos o Paulo Portas de dedinho no ar e sorriso predador, a cuspir demagogia sobre “os que não querem trabalhar”. Mas também há os outros, os que mesmo sem reportagens da TV estão ali a distribuir o conforto possível, enquanto Lisboa se apresta para o jantar, para os copos, para mais uma noite de sábado. Evitando o contacto entre olhares, envergonhados ou com medo nem sei de quê, lá seguem os convivas do jantar, com os seus saquinhos da Fnac de súbito tão flácidos e feios.

2 comentários:

João Martins disse...

Bom dia. Senti exactamente o mesmo "peso", ainda que sem saco da FNAC, provavelmente num outro local de Lisboa e com outros protagonistas, na sexta feira à noite. O sujeito era um arrumador que se referia "ás mariscadas" que estariam a ocorrer nos vários locais de restauração da moda existentes na zona.

Justiniano disse...

Rainha! Os que estão ali e acolá, nos lugares de sempre, onde sempre têm estado para os novos e velhos pobres!!
Mas o constrangimento, à vista e à consciencia, que referes como vergonha e medo, é, de certo modo, uma manifestação de virtude de consciencia!! Caindo esse mesmo constrangimento teremos apenas a indiferença e o antagonismo!!