14/07/10

Multiculturalismo, pluralismo e autonomia

Transcrevo do jornal El País a seguinte notícia:


El empeño de una mujer musulmana en vestir el niqab, el velo que cubre toda la cabeza menos los ojos, le ha impedido acceder al ginecólogo de la sanidad pública y también denunciar esos hechos ante los juzgados de Vitoria. La mujer de origen tunecino, Nadia Chahbi, que sufre un embarazo de riesgo, no pudo acceder al especialista porque su médico de familia le niega el volante correspondiente si se presenta en su consulta cubierta por el niqab.
Nadia denunció a su médico por ello, pero ayer la juez le exigió retirarse el niqab en el momento de la declaración. Justo lo que ella esperaba. "Vengo nerviosa porque me van a pedir que me quite el niqab y no me lo voy a quitar. Lo haría ante la juez, pero no ante el público", comentó Chahbi junto a su marido, Redouan, a las puertas del Palacio de Justicia de Vitoria.
La abogada de Nadia, María Luz López Artetxe, pidió que declarase sin el velo solo ante la juez, el fiscal y la propia abogada. La magistrada se negó e insistió en que mostrara su rostro a todos los presentes en la sala. Nadia se negó por motivos religiosos, lo que provocó que se diera por retirada la denuncia. La mujer -que estudió enfermería en Navarra pero no ejerce- sigue sin ginecólogo.

Penso que estamos perante uma útil achega à discussão encetada pelo Miguel Madeira na caixa de comentários deste post do João Pedro Cachopo. Evidentemente, qualquer juízo sobre o multiculturalismo dependerá do que se entender por este termo e, a montante, por "cultura". O meu ponto é o seguinte: se por "cultura" entendermos tudo o que, numa sociedade e na formação dos indivíduos que são seus membros, não releva directamente da biologia e da física, mas articula a relação com esse estrato ou camada, bem como as condições da vida material e o regime de relações que preside à sua satisfação - ou seja, se por "cultura" entendermos o núcleo fundamental das instituições de uma forma de sociedade, o multiculturalismo, entendido como coexistência em pé de igualdade de duas ou mais culturas no interior de uma sociedade dada, é uma impossibilidade lógica e política, pois a única alternativa possível à cultura única (ainda que internamente pluralizada) é a subordinação de uma ou várias culturas (segregadas, regulamentadas à parte, guetizadas e inferiorizadas, juntamente com os seus membros) à cultura governante.
Esta impossibilidade do multiculturalismo decorre da impossibilidade de coexistência de regras, e regras de validação ou legitimação das regras, diferentes da coexistência comum num mesmo conjunto social. E a democratização radical das instituições e da relação que mantemos com elas não só não aboliria, mas de certo modo vinca mais ainda a impossibilidade de estabilização da lei, no sentido mais amplo e mais forte, acima da deliberação e decisão instituintes, igualitariamente organizadas a nível colectivo e pressupondo a autonomia como exercício - e paideia orientada para esse exercício - de participação democrática de todos no governo da polis. O próprio reconhecimento/instituição de um direito à pluralidade de opiniões só pode ser garantido como regra política comum, universal e vinculativa, assumida por todos os cidadãos. Assim, o "pluralismo" democrático, necessário ao exercício do livre-exame e da autonomia governantes, exclui que a lei e a coexistência sejam definidas por uma verdade superior (religiosa, científica, tradicional) exterior e superior ao confronto das opiniões e propostas dos cidadãos organizados, cuja definição ou interpretação caiba a uma igreja ou outro corpo hierárquico particular. A autonomia democrática é um traço distintivo definindo uma alternativa cultural (socia--histórica) que arruína e derroga ou destitui politicamente qualquer outra fonte da sua lei ou qualquer outra instância de validação das formas de vida acima do autogoverno comum.

4 comentários:

Ricardo Alves disse...

As pessoas usam «multiculturalismo» em, pelo menos, três acepções diferentes.

(1) A existência de grupos de pessoas com diferentes culturas na mesma sociedade (multiculturalidade social).

(2) O discurso que relativiza os juízos éticos sobre diferentes práticas culturais (relativismo cultural).

(3) A organização política da sociedade em função da pertença a grupos culturais (multiculturalismo político).

Eu nada tenho contra (1), antes pelo contrário, e oponho-me fortemente a (3), porque atinge a universalidade das leis republicanas.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Ricardo Alves,
é verdade o que dizes e que as acepções que citas são correntes. O meu ponto é que são também imprecisas. E, a menos de entendermos por "cultura" uma espécie de colecção avulsa de traços e preferências "folclóricas" ou de restringirmos demasiado o seu conteúdo, o universalismo republicano a que te referes é ele próprio um traço distintivo cuja presença marca e identifica culturalmente as sociedades em que se afirma - tal como é excluído, por princípio, de outras formas de ordenamento cultural dos territórios sociais.
Abraço republicano

miguel sp

Unknown disse...

O multiculturalismo, enquanto semi-ideologia (se compreendo o seu enunciado), é uma impossibilidade lógica e política por ser irreconciliável com um projecto específico (o da radicalização democrática)ou tout court?

Miguel Serras Pereira disse...

Caro LPB,
o multiculturalismo, entendido como coexistência pacífica e em pé de igualdade entre duas ou mais culturas é política e logicamente impossível, se entendermos por cultura o ordenamento institucional, articulado em certas representações nucleares "coladas" à acção que regulam o funcionamento da sociedade.
As duas ou mais culturas têm versões diferentes da origem e condições de validade das leis, das relações entre os sexos, do lugar a atribuir a cada um em função do seu papel, da educação, dos direitos e deveres, etc. E se essas versões não coincidem, as duas culturas não podem governar ou formar ao mesmo tempo uma mesma sociedade - a não ser na condição de uma subordinar a outra ou outras, conferindo-lhes um estatuto subalterno e dominado. Caso contrário, a relação entre as duas culturas é um combate pela hegemonia.
Da cultura democrática - cultura da autonomia e do autogoverno - faz parte um traço essencial que tem a ver com o modo de deliberação, decisão e validação da lei através da participação igualitária daqueles a quem se aplica. O que quer dizer que a democratização se faz contra todas as representações culturais que situam a lei num plano superior à opinião e deliberação dos cidadãos, chame-se a esse plano religião, tradição dos antepassados ou ciência económica, confiando a um corpo especializado e hierárquico à parte a sua interpretação (os representantes ou detentoress do acesso à verdade superior). Claro que a democracia não implica a destruição da ciência natural, da memória histórica, do conhecimento das tradições ou sequer da fé religiosa, mas implica a sua destituição enquanto fontes últimas das leis e dos costumes, ou instâncias de governo, limitando e subordinando o exercício do autogoverno colectivo e/ou da autonomia individual de cada cidadão (porque esta é condição daquele). O reconhecimento da organização e das instituições sociais como obra e responsabilidade humanas são um traço distintivo ou diferencial que tornam a democracia incompatível com qualquer formação ou concepção cultural que as negue. É neste sentido que o combate pela autonomia reclama a legitimidade da pluralidade das opiniões e das propostas contra as identidades culturais que as prescrevem furtando-as ao livre-exame.
Cordialmente

msp