28/08/10

Um caldeirão de Freud

Alguns utilitaristas desenvoltos têm povoado a blogosfera de intervenções que opõem a sorte de Sakineh Ashtiani à do Irão, dizendo que não podemos reivindicar a sua vida e liberdade nem a abolição do direito islâmico em vigor no país, o qual é uma das peças fundamentais da ditadura, se isso for um gesto contra o Irão. Os mesmos que exigem - e bem — sanções internacionais contra o regime israelita insurgem-se singularmente contra a ideia de manifestações e campanhas que, em seu entender, correspondam a pressões internacionais pondo em causa a soberania do Irão e os seus direitos à independência nacional (ainda que a soberania da nação se exerça, em primeiro lugar, como é o caso, à custa dos direitos e garantias do povo iraniano).

Mas, jogando por um momento o seu jogo — aceitando provisoriamente os termos em que põem a questão -, vemos que as dúvidas se multiplicam, abrindo campo às seguintes interrogações ou outras semelhantes:

1. O que é ser contra o Irão?
2. Defender a abolição da lei islâmica em todos os países que a adoptam e combater o islamismo político em todos os países que o praticam é ser contra o Irão?
3. Querer ver derrubada a ditadura iraniana é ser contra o Irão?
4. Querer, para todos e cada um dos cidadãos iranianos, a liberdade e a igualdade que queremos para nós é ser contra o Irão?

Enfim, não preciso de me alongar mais para dizer que parece evidente que, sem se definir bem o que é (e porquê) defender ou atacar o Irão, não será possível qualquer discussão séria do problema.

Por fim, é preciso acrescentar que certos comentadores hostis às interferências na política interna dos outros países (ou de alguns outros países) usam a lógica do "caldeirão de Freud" (este, para ilustrar certos registos de funcionamento psíquico, serve-se da história de alguém que protesta junto de um amigo ao qual emprestara um caldeirão que esse amigo lhe teria devolvido furado, obtendo por resposta os três desmentidos seguintes: 1. Nunca me emprestaste um caldeirão; 2. Já to devolvi intacto; 3. O caldeirão já estava furado quando mo emprestaste). Ou seja, no fundo, a sua argumentação equivale a dizer:

1. Nunca houve lapidações no Irão de 1979 em diante, ao contrário do que pretendem a CIA e seus sequazes;
2. As lapidações no Irão acabaram em 2002, apesar de a CIA ocultar esse facto;
3. As lapidações no Irão e o termo da moratória de 2002 foram promovidos por agentes da CIA infiltrados no aparelho judicial iraniano, responsáveis também tanto pela comutação, através do recurso ao enforcamento, de numerosas sentenças de lapidação punindo crimes de adultério, como pela manutenção e incremento das sentenças de morte e execuções capitais punindo diversos tipos de infracções  (em matéria de costumes, como a homossexualidade, ou de natureza política, entre outros casos).

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