21/05/11

Heydrich + Kubis e Gabcík

Quando das minhas várias estadias em Praga havia sempre um mesmo ponto misterioso nas histórias checa e europeia que nunca conseguia resolver a contento por via da satisfação plena da minha curiosidade. É que havia um nítido embaraço na forma como os checos lidavam retroactivamente com a memória do assassinato em 1942 de Heydrich, o dignatário nazi que dirigia a ocupação da Boémia e da Morávia (actual República Checa), em acumulação com o lugar de adjunto de Himmler no aparelho repressivo e de coordenador do plano de extermínio dos judeus (Heydrich era o chefe de Eichman). E enquanto havia um hiato claro relativamente ao acto do atentado em si, já era ultra-celebrado o martírio da aldeia de Lídice (próxima de Praga), numa espécie de “romagem obrigatória” para todos os visitantes da Checoslováquia, que fora arrasada com a população chacinada em represália pelo assassinato de Heydrich. Mas se a aldeia mártir de Lídice constituía um ponto altíssimo de ritual antifascista integrando a propaganda oficial para ilustrar a barbárie nazi, o acontecimento conexo, o pretexto para a matança de Lídice, era descaradamente contornado. Lembro-me que só após várias insistências consegui que numa das minhas visitas me indicassem o local (que não possuía qualquer evocação ou indicação especial), perto do acesso ao Castelo, onde o atentado foi consumado. Se era expectável que se escutassem palavras de regozijo e reconhecimento perante o acto corajoso dos patriotas (um checo e um eslovaco), os quais tinham perdido a vida em função das suas participações na resistência e no atentado, o que, a custo, se conseguia escutar era, sob forma de arrumar o assunto, uma consideração negativa acerca do plano devido às consequências pelas represálias dos nazis. Como a mesma apreciação desnivelada se repetia a cada minha visita a Praga, percebi os motivos do diferente “tratamento”: Lídice era local de martírio de inocentes mineiros represaliados sem nada estarem relacionados com a operação de liquidação de Heydrich; o atentado em si fora comandado pelos ingleses, portanto fora dos núcleos ortodoxos e justos do antifascismo celebrado, ao mesmo tempo que as represálias tinham sido de tal forma violentas que não justificavam o acto terrorista contra um dos nazis mais eminentes e poderosos. Fiquei sempre com esta “desproporção” atravessada no meu espírito e que exemplificava a forma manipulatória, selectiva, como os totalitarismos lidam com o passado e a memória. E prometia a mim próprio que encontraria, mais cedo ou mais tarde, os dados que reequilibrassem o meu conhecimento de acontecimentos tão dramáticos e tão importantes e envolvendo a fase de domínio na altura em que a “peste castanha” do nazismo dominou grande parte da Europa.

O romance do jovem Laurent Binet (Prémio Goncourt para um “primeiro romance”) (*), editado há pouco entre nós, veio resolver os meus enigmas relativamente ao atentado que liquidou Heydrich. Há satisfações tardias que desvalorizam as demoras. É este o caso. Se agradeço a Binet a parte que lhe devo, os checos que lhe agradeçam a parte que lhes compete: o contributo para a integralidade da sua memória enquanto povo, fazendo justiça às suas galerias de demónios, mártires e heróis.

(*) – “HHhH, Operação Antropóide”, Laurent Binet, Sextante Editora

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