06/06/11

Impressões sobre a acampada de Lisboa (pirateadas ao Ricardo)

O lendário camarada Ricardo Noronha bem pode ter abandonado, por outras tarefas e apostas mais apaixonantes ou imperiosas, este cais — que, navegando, o Vias se propõe, digo eu — de partir sem fim enquanto passa: porque também lo nuestro es pasar, como cantou Machado, mas pasar abriendo caminos, caminos sobre la mar. O mais provável é que, enquanto escrever posts destes no Passa Palavra ou seja lá onde for, não se livre de continuar a ser pirateado e publicado aqui. Como é agora o caso.

Não foi seguramente uma revolução, como começou por ser anunciada, e a democracia (aquela realmente existente, ou seja, a representativa) também não ganhou ali o seu decisivo impulso de renovação. Como acampamento teve as suas limitações e conheceu uma existência acidentada. Como assembleia foi palco de discursos estereotipados, tiques parlamentares e mais do que um vício formal, como cumpre numa reunião pública de pessoas das mais diversas sensibilidades.
E contudo, quem tiver passado pelo Rossio durante os dez dias que durou a “acampada de Lisboa” dificilmente terá passado ao lado da dinâmica ali gerada. Centenas de pessoas a debater na praça mais movimentada da capital, grupos organizados de maneira informal, com composições oscilantes e empenhos variáveis, a experimentar os riscos e as potencialidades da decisão colectiva, um espantoso conjunto de problemas logísticos resolvidos quotidianamente por pessoas sem experiências prévias de militância, uma inesgotável sucessão de gestos inesperados e contributos modestos mas efectivos: desde a tela de cinema ao cartaz manuscrito à preciosa sombra de um pano estendido sobre as cabeças ao sol. Teve de tudo isso e muito mais aquela espécie de caos organizado, em que tudo foi fluído, incerto, precário e provisório, desde o primeiro ao último dia, apesar dos vários esforços para o converter numa outra coisa qualquer, funcional, ordenada, disciplinada, apresentável e respeitável.

Os mendigos, marginais, loucos e sonhadores que povoam as ruas de Lisboa encontraram ali repouso e refeições quentes. Alguns integraram-se e contribuíram à sua maneira, outros serviram-se do que lhes servia e observaram com atenção. Quem passava pelo Rossio parava para ver, quem gosta mais de falar recebeu o microfone e teve três minutos para desabafar, partilhar, reflectir em voz alta ou fazer às massas o seu discurso longamente ensaiado. Misto de cenário performativo e órgão de democracia directa, a assembleia tornou-se o pólo catalisador de tudo, mas nem por isso resumiu a totalidade da experiência possível naquela praça. O encontro e a partilha entre pessoas que não se conheciam ou que mal haviam trocado palavra, a possibilidade, que muitos nunca tinham imaginado, de produzir um discurso político próprio sobre o existente sem reproduzir o cânone político-mediático estabelecido, a descoberta da vida quotidiana e da história como um terreno de combate sujeito a inúmeras possibilidades – tudo isso fez dos acontecimentos do Rossio uma ilustração prática do que acontece quando centenas de sujeitos anónimos se juntam para fazer das suas fraquezas forças. Quão ridícula e grotesca pareceu a campanha eleitoral portuguesa para quem ali passou algumas horas a discutir política… Todas essas figurinhas deprimentes que se acotovelavam nos telejornais pareciam saídas de outro planeta, quando comparadas às intervenções ponderadas – fossem elas mais serenas ou mais turbulentas – ouvidas à sombra da estátua de D. Pedro IV.

A poesia voltou a estar nas ruas e o imprevisível tornou-se banal. Ao ponto de, durante as longas noites da praça, o grupo que debatia, com a maior gravidade e não menos solenidade, o conteúdo de um manifesto que deveria representar a assembleia popular ali realizada, poder ser facilmente confundido com aquele outro que, com muito menos solenidade e sem um pingo de gravidade, elaborava na forma de um cadáver esquisito a sua própria abordagem ao assunto. Foi (e ainda é cedo para saber o que virá a ser) sobretudo isso o Rossio: um poema escrito a várias mãos, musicado com uma melodia diferente todos os dias, mas que nunca deixou de soar familiar. Como um saxofone que do telhado de um prédio encontra o violino que toca noutro quarteirão e juntos se confundem com o ruído da cidade, assim também se lançou à solta pelas ruas aquela música, oferecendo-se a quem a quisesse ouvir. Porque não temiam nada, os que fizeram sua aquela praça foram capazes de dar a ouvir um ligeiro eco do futuro.

Nota: Quem assina este texto não tem a pretensão de representar e dar a conhecer tudo aquilo que passou pelo Rossio nas últimas semanas. Inicialmente céptico em relação ao que ali tomou forma, deixei-me arrastar pelos acontecimentos sem qualquer pretensão de os influenciar. É possível e até provável que muita coisa me tenha passado ao lado. Outras pessoas há que viveram com muito maior intensidade e disponibilidade quer o acampamento quer as assembleias quer os grupos de trabalho. Bom seria que as insuficiências destas impressões as levassem a partilhar o seu próprio ponto de vista sobre o assunto.

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