11/01/12

De como Celeste Cardona, outra iluminada em quem pensarei sempre que pagar a conta da luz, me fez regressar a Saldanha Sanches e ter saudades dele

«A FRAUDE fiscal terá de terminar "a bem ou a mal", anunciou o primeiro-ministro Durão Barroso, e este combate vai ser conduzido pela Polícia Judiciária. Isto numa primeira fase: se mesmo assim a fraude continuar o Governo pensa recorrer à polícia de choque e, em último caso, ao estado de sítio com intervenção das Forças Armadas.
Compreende-se o desespero do Governo: a administração fiscal é um corpo que já nem reage a estímulos. Contudo, o desespero é um mau conselheiro: talvez haja aqui apenas a habitual incapacidade do primeiro-ministro para falar com um mínimo de rigor de qualquer coisa que seja complexa. Talvez seja apenas isso.
Mas se há alguma intenção séria de reduzir o papel da Administração Fiscal e aumentar o da Polícia Judiciária no combate à fraude fiscal temos asneira grossa.
Primeiro porque a auditoria fiscal é um trabalho fortemente especializado. Exige alguns milhares de especialistas que vivem mergulhados nos problemas dos balanços e das empresas. Que só depois de muitos casos começam a perceber o que fazem.
A intervenção da Polícia Judiciária tem de ser sempre uma "ultima ratio". O seu objecto só pode ser o crime organizado naquelas zonas em que a fraude fiscal se funde com o crime puro e simples (quadrilhas de contrabandistas, por exemplo) e corrupção na DGCI e nas Alfândegas.
Estas são as razões de fundo: mas temos também razões conjunturais que fazem com que deslocar as competências do combate ao crime fiscal dos departamentos dirigidos pela ministra das Finanças para os que são actualmente dirigidos pela ministra da Justiça fosse um acto tresloucado. Como dantes se dizia dos crimes passionais.
As opiniões de Manuela Ferreira Leite sobre a necessidade de combater a fraude fiscal e o crime económico são bem conhecidas. As opiniões de Celeste Cardona nesta matéria também. Mas não vão exactamente no mesmo sentido.
A honorabilidade pessoal de Manuela Ferreira Leite não pode ser posta em causa. Quanto a Celeste Cardona talvez se possa afirmar, sem correr o risco de um processo judicial, que a sua imagem não terá uma cotação tão elevada como a da sua colega das Finanças. Embora também se deva dizer em abono da verdade que não é tão má como a de Vale e Azevedo.
E também é preciso levar em conta que, segundo soubemos, aquelas investigações da Judiciária sobre as ligações entre consultores fiscais (há de tudo neste ofício) e certos funcionários e ex-funcionários da DGCI não estavam, digamos assim, a despertar um grande entusiasmo na ministra da Justiça.
Além destes pequenos óbices podemos também ter aqui um grave problema de consciência.
Durante muito anos, como porta-voz do PP para os assuntos fiscais, Celeste Cardona foi uma das principais defensoras da versão tropical das «garantias do contribuinte»: no cerne desta fecunda escola de pensamento, que tem em alguns justributaristas brasileiros os seus maiores representantes, o papel do Direito Fiscal é dar aos contribuintes (com rendimentos elevados)tantas garantias, tantas garantias, que os impostos só sejam pagos pelos cidadãos que tiveram a infeliz ideia de pertencer às camadas médias e baixas de rendimento. Como sucede no Brasil em que as grandes empresas (e não apenas a banca, como sucede em Portugal) pura e
simplesmente não pagam impostos.
E parece-nos muito censurável que o Governo violente a delicada consciência de Celeste Cardona forçando-a a abdicar das nobres convicções que sempre exprimiu a este respeito. E podemos testemunhar pessoalmente sobre a importância que a senhora ministra da Justiça sempre atribuiu a estas questões de consciência. E tudo apenas para aumentar as cobranças dos impostos perseguindo honestos empresários apenas porque estes não pagam impostos.
Estamos mesmo convencidos que se virmos dentro de alguns dias a ministra a fazer na praça pública abundantes juras sobre o seu empenhamento no combate à fraude fiscal e ao crime económico estaremos perante um daqueles casos em que a razão de Estado com a sua força impiedosa e por meio do exercício da coacção psicológica força certas pessoas a abjurarem das suas mais íntimas convicções.
Coisa tanto mais violenta quanto se sabe que não foi para isso que o líder do PP colocou Celeste Cardona na pasta da Justiça. E que foi apenas a sua absoluta dedicação a este partido que a levou a aceitar uma pasta tão difícil e para a qual se não sentia preparada. Era preciso limitar os danos que o caso Moderna podia provocar a Paulo Portas e por isso Celeste Cardona aceitou nobremente esta missão de sacrifício. E os sacrifícios têm limites.
Nota final: elementares deveres de justiça obrigam-nos a saudar a criteriosa escolha do magistrado que vai dirigir o combate ao crime económico.
Que melhor lugar para perceber as especificidades deste tipo de crimes que o xercício de um cargo jurisdicional - que acumulava com as suas funções públicas - na Liga do Futebol?»

*Artigo de opinião assinado por Saldanha Sanches e publicado no Expresso a 7/09/2002

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