29/05/12

Austeridade com aspas?

Na sua coluna semanal do Expresso, Rui Ramos parece argumentar que não houve austeridade na Grécia ("Por isso a Grécia pôde, em «austeridade», manter a despesa pública ao nível mais elevado da sua história")

Será que não houve mesmo austeridade na Grécia? Vamos ver os dados (p.ex., ao Eurostat):




Olhando para os dados do deficit, é fácil ver a austeridade em acção - o deficit baixou de 36.103 milhões de euros em 2009 para 19.565 milhões em 2011 (note-se que o governo grego mudou em Outubro de 2009 e foi a partir de 2010 que começaram os cortes em larga escala, nomeadamente a partir da intervenção da "troika" em Maio desse ano)

Olhando para a despesa pública (uma medida que eu acho menos relevante que o deficit para averiguar se há ou não austeridade, por razões que vou referir abaixo), a austeridade não é tão visível a olho nú (por causa do tamanho das barras), mas está lá: a despesa baixou de 126.646 milhões de euros para 107.769 milhões em 2011 (uma redução de 13% em dois anos).

Note-se ainda que a Grécia tem tido inflação ao longo destes anos, pelo que a redução real, tanto do deficit como da despesa, tem sido maior do que estes quadros mostram.

Além disso, se analisarmos o deficit primário (i.e., excluindo os juros pagos pela dívida), a redução do deficit é ainda mais visível. Não encontro nenhum sitio com a indicação do valor do deficit primário grego, mas cruzando os dados do Eurostat com os da OCDE (xls), é fácil fazer uma estimativa:


 De novo, visualmente não se vê uma grande redução da despesa, mas foi uma queda de para aí 18% de 2009 para 2011.

Por quê prestar atenção ao deficit primário? Por duas razões: por um lado, é a variável que depende da politica do governo grego; por outro, atendendo que grande parte dos juros vão para credores internacionais, a redução na parte da despesa ou do déficit que sobre depois de pagar os juros é uma melhor medida para os sacrifícios do povo grego.

Então, como é que Rui Ramos pode insinuar que não houve austeridade na Grécia?

Suspeito que se inspirou num gráfico que anda a correr a ala direita da internet "mostrando" que em muitos países europeus, incluindo a Grécia, a despesa públicase se manteve constante ou até cresceu.

Esse gráfico tem dois problemas: o primeiro é que, ao colocar a Grécia numa mesmo gráfico que economias muito maiores (como a França), distorce de tal maneira a escala que os cortes gregos desde 2009 se tornam praticamene invisiveis (é preciso olhar com atenção para ver que a linha vai para baixo).

O segundo problema é usar a despesa como medida de "austeridade"; é verdade que a definição de "austeridade" não é lá muito clara: umas pessoas usam-na no sentido de "reduzir o déficit" e outras no sentido de "reduzir a despesa". No entanto, parece-me que o sentido de "reduzir o déficit" tem mais lógica:

- Por um lado, em termos de sacrificios, "apertar o cinto", etc., é tão "austeridade" para o cidadão médio ter acesso a menos serviços públicos e protecção social ou ter que pagar mais impostos

- Por outro, temos que ver a definição de "austeridade" no contexto das polémicas entre os economistas sobre a austeridade: a posição da teoria económica tradicional sobre a austeridade durante as recessões é, mais ou menos, "numa recessão, o sector privado tenta gastar menos do que ganha; mas como, no conjunto da economia, as despesas do Francisco são o rendimento do Manuel, se todos tentam gastar menos do que ganham, acabam todos a ganhar menos; assim, durante uma recessão, o Estado tem que gastar mais do que ganha para compensar; desta forma, durante as recessões o Estado deve aumentar o déficit, e sem em vez disso tenta reduzí-lo, só vai tornar a crise ainda pior". Podemos concordar ou não com esse argumento, mas, concorde-se ou não com ele, o certo é que o raciocinio gira à volta do déficit público, não da despesa pública. Ora, se o que se discute é se os cortes no déficit contribuem ou não para agravar as recessões, penso que a variável que interessa analisar é mesmo o valor do déficit, não o da despesa.

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