18/09/12

Ainda sobre a criminalização liberal da blasfémia

Ainda a propósito de A Inocência dos Muçulmanos e das reacções que tem causado, talvez seja oportuno notar que os defensores liberais da criminalização da blasfémia em nome, não tanto da própria fé, como dos direitos das identidades religiosas e das convicções pessoais de cada um, teriam obrigação de reclamar que fossem retirados da circulação passagens como a que aqui se cita a seguir de O Guardador de Rebanhos, que atentam contra as crenças religiosas mais profundas sabe-se lá de quantos cristãos que se estejam nas tintas para a estética. Ou será menos grave chamar "mala" à Virgem Maria do que insinuar a presença de "versículos satânicos" entre as verdades do Corão ou apresentar a embriaguez como hipótese explicativa de trechos mais ou menos longos da mensagem do Profeta?

Aliás, se virmos bem, as razões que, para o irenismo liberal, deveriam justificar a proscrição de Caiero não se ficam pelos seu desrespeito do pretenso direito dos crentes a verem respeitadas as suas convicções. O poema peca também pela utilização de um idioma contaminado por laivos racistas — "um trapo à roda da cintura / Como os pretos nas ilustrações" —, além de configurar um nefando incitamento à destruição do equilíbrio ambiental — que outra coisa chamar, com efeito, a "arrancar flores para as deitar fora"? — que nenhuma sociedade bem ordenada pode hoje permitir-se.


Num meio-dia de fim de primavera 
Tive um sonho como uma fotografia. 
Vi Jesus Cristo descer à terra. 
Veio pela encosta de um monte 
Tornado outra vez menino, 
A correr e a rolar-se pela erva 
E a arrancar flores para as deitar fora 
E a rir de modo a ouvir-se de longe. 



Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem


E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.


Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

(…)

Alberto Caeiro,  O Guardador de Rebanhos, VIII.

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