12/09/12

Políticas da História

Deixo aqui o meu contributo em torno da actual polémica historiográfica, hoje publicado no "Público".

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POLÍTICAS DA HISTÓRIA
por José Neves 
Público, 12 Set 2012

Os trabalhos de Rui Ramos e de Manuel Loff constituem dois contributos importantes para o conhecimento do Portugal Contemporâneo e a ambos devemos uma crítica despida de elogios fáceis e de insultos gratuitos. Da minha parte, contem com estes cinco pontos.

1. Se é por de mais evidente que um historiador procura conhecer o passado, menos assumido é que nesse processo também conta o presente em que o historiador se situa. Com efeito, o meio político-ideológico em que se move todo e qualquer historiador marca inelutavelmente o seu trabalho científico. Por isso, quando António Barreto elogia a “História de Portugal” coordenada por Rui Ramos porque a obra teria finalmente permitido vencer «o duopólio fanático estabelecido há muito entre as Histórias ditas “da esquerda” e da “direita”», é a uma ilusão de imparcialidade que estamos a ser atraídos. O primeiro obstáculo ao debate surge aqui, nesta suposição de Ramos como um historiador neutral, que ignora o facto do próprio Ramos ter já assumido – e bem – que o seu olhar historiográfico não é estranho ao seu percurso político.

2. Esta relação entre a agenda historiográfica e os interesses político-ideológicos do historiador desenvolve-se de um modo complexo, pouco directo e nada linear. Desde logo, a relação não é unívoca. Isto é, a agenda historiográfica do historiador é sensível aos interesses políticos do historiador, mas estes também a reflectem. Na sua crítica, Loff observa a afinidade entre a política de Ramos e a historiografia de Ramos, mas, a meu ver, dá um passo abusivo, sugerindo que o trabalho historiográfico de Ramos estaria ao serviço de um propósito político. Nesta sugestão de instrumentalização tem tido origem parte dos equívocos do debate que Loff em boa hora lançou.

3. Uma outra parte dos equívocos tem origem na leitura que Ramos fez das críticas que lhe foram dirigidas. Esta leitura produziu mais do que uma distorção, como expôs Mário Moura. Por exemplo, se Loff escreveu que para Ramos “o salazarismo era ‘uma espécie de uma monarquia constitucional’”, Ramos acusou Loff de ter dito que ele, Ramos, consideraria o Estado Novo “um regime absolutamente idêntico à monarquia constitucional do século XIX”. Se Loff escreveu que o Salazar de Ramos não tem “‘nada de uma personagem ditatorial’ como a dos líderes da Europa fascista do tempo”, Ramos acusou Loff de ter dito que o Salazar de Ramos “não era uma personagem ditatorial”. E se Loff escreveu que o texto de Ramos apresenta “uma ficção sinistra e intelectualmente cínica sobre a ditadura salazarista”, Ramos acusou Loff de o “tachar de fascista “cínico” e “sinistro””. Em suma, Ramos terá que cuidar um pouco melhor da sua própria criatividade hermenêutica.

4. O maior problema que encontro na actual polémica reside, porém, no facto de deixar na sombra um conjunto de questões que não implicam directamente o debate sobre a natureza política do Estado Novo (em que tendo a concordar com a posição de Loff) ou o modo como Ramos dá conta da repressão salazarista (já criticado por Rosas, Costa Pinto ou Lucena) e da Guerra Colonial (desconstruído por Ramada Curto). A primeira destas questões tem que ver com a ideia de política subjacente ao olhar de Ramos. Procurando contrariar o que entende ter sido uma tendência historiográfica para a sobrevalorização do económico, do social e das estruturas, e para a desvalorização do político e da acção, o esforço de Ramos tem acusado dois vícios: tende a circunscrever o poder à esfera da política e, como sublinhou Francisco Bethencourt, a confinar o domínio da acção política às atitudes e comportamentos do que chama de elites. A esta luz, teria sido porventura mais ajustado, no que à parte contemporânea diz respeito, que se tivesse optado por um título como “História Política de Portugal” ou “História Elitista de Portugal”.

5. A segunda questão que não tem sido debatida é a da escrita da história. Existem factos para quase todos os gostos, o que, não querendo dizer que não há risco de um historiador simplesmente inventar acontecimentos que não sucederam, exige que também foquemos não apenas o modo de selecção mas também a forma de enunciação dos factos. A título de exemplo, chamo a atenção para a relação que na escrita de Ramos se tece entre a sua voz de narrador e a fala das fontes por ele citadas. Na negociação destes discursos, essa escrita tende, frequentemente, a criar uma indefinição entre a fala do narrador e a fala dos documentos que cita, deste corpo-a-corpo nutrindo-se, em parte, a ilusão de neutralidade que ampara o entusiasmo pueril de um Barreto. Ora, se é bem verdade que o risco de ilusão jamais poderá ser completamente eliminado, podemos pelo menos exigir que ela não seja objecto de um uso instrumental. Infelizmente, é tal instrumentalização que me parece ocorrer na resposta que Ramos dirige a Loff. Se percebo que critique Loff por este citar partes do seu livro como se fossem fala do próprio Ramos e não, como em alguns casos sucede, fala de terceiros que Ramos teria simplesmente citado (“a expressão não é minha, mas de Massis”, diz Ramos); não posso entender a que propósito, ao defender-se de uma outra crítica de Loff, Ramos opta por citar em seu abono a fala de uma das fontes por ele convocada, agora pedindo-nos que a aceitemos como reveladora do seu próprio ponto de vista (“cito uma carta impressionante de José Marinho, de 1937, que bem revela o peso opressivo da ditadura salazarista”, diz Ramos a Loff). Tal como os que apontei a Loff, estes são erros admissíveis, de que ninguém está a salvo, incluindo nós próprios, é claro. A única coisa inadmissível em toda esta polémica é o apelo de Filomena Mónica ao silenciamento de Manuel Loff.

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