10/03/13

Uma revista nova para a velha crise



 A revista é a Flauta de Luz, a crise é a que se sabe. Mas já lá vamos…
Chocante é a ideia que paira em permanência nos média e nas conversas de café (e não só), segundo a qual há uma crise EM Portugal. Não é que a sociedade portuguesa esteja envolvida na crise mundial do sistema capitalista global. Como se tratasse de uma crise portuguesa!? Como o fado de « Uma casa portuguesa » ou o Cozido! Mais uma especialidade da casa.
Esta visão das circunstâncias reais da situação vai de par com outra ideia que contribui para limitar o pensamento e, consequentemente, a acção possível. Que vivemos uma situação anormal, uma passagem difícil que será em breve ultrapassada. Que a situação vai, deve, voltar à « normalidade ». Isto é, ao restabelecimento das condições que criaram precisamente o desastre actual! É neste campo do « momento anormal que deve ser normalizado », que funciona a política, as forças políticas com as respectivas alternativas, que propõem, portanto, «mais do mesmo»! E o mesmo é a « economia », com as suas leis e fetiches, conceitos (produtividade, produção, rentabilidade) separados da vida humana e das sociedades, acima delas.
Todos estes discursos e raciocínios, propagandas do poder e de seus servidores, são essencialmente nacionais, patrióticos, porque não há nacionalismo sem « defesa da economia ».
Deste modo, fica de fora todo o debate sobre a natureza da crise, que é o debate sobre a essência do sistema como um todo.
E assim se tem mantido fechada a grande maioria dos espíritos nesta «casa portuguesa».
Mas as ideias superficiais, confortáveis, que são o fundamento do logro ideológico entram também em crise com o derrocar das condições materiais da vida social. E as gentes começam a perceber, a descobrir, que o momento é um processo, que o «anormal» é capaz de ser a regra, que não haverá portanto regresso a uma situação de normalidade. Resumindo, que o sistema capitalista é um sistema que não está assente em normalidades nem em equilíbrios, que é uma organização social instável e desequilibrada que, para se salvar e perpetuar, reduz os seres humanos a números susceptíveis de serem apagados quando necessário. Crises, guerras, catástrofes e genocídios sociais são opções desta dita civilização. Pode bem acontecer que se esteja a chegar, em Portugal como noutros lugares, a um despertar das consciências. Porque a consciência do que acaba de ser dito é um passo enorme. Paralisante também, porque implica a necessidade de procurar outros caminhos, que não os da falsa alternativa do «mais do mesmo». O que explica, no caso português, o peso e a gravidade das recentes manifestações, onde se passou do festivo ao ar sério e ao silêncio. Quando centenas de milhares de pessoas saem para a rua em silêncio, elas estão a pensar. Nada que ver com os desfiles onde a gritaria das palavras de ordem impede de pensar de forma autónoma.
Quando se abafa em casa abrem-se as janelas. Para sair da «crise à portuguesa», há que pôr os problemas num plano mais geral, planetário, universal. Sair da economia e dos seus determinismos e interrogar a lógica do sistema. Pensar é pensar de outra forma. Ao que vamos ? Para onde vamos ? Como vamos ? Porque vamos ?
E é nesta encruzilhada que me apraz dar a conhecer o aparecimento de uma nova revista. Flauta de Luz chega no momento oportuno em que falta a luz,
em que se procura luz. Não para guiar cegos, submissos e acompanhantes, mas para animar o pensamento dos que estão decididos de recusar a lógica mortífera e determinista de um único horizonte possível.
Editada e coordenada por Júlio Henriques, com a colaboração de uns quantos companheiros inquietos e irredutíveis, o primeiro número de Flauta de Luz deita fogo à lógica produtivista do capitalismo. Os textos  «Canibalismo pós-civilizacional », de Günther Anders, «Seis teses sobre a energia nuclear», de David Watson, «Origens da ideologia do progresso», de Dietmar Sedlmayr, «Autodesprezo», de François Chevalier, «Viver sem televisão», de Júlio Henriques, entre outros, são uma corrente de ar fresco para quem procura sair do abafado confinamento português, da mediocridade dos cálculos tácticos da política, da esterilidade dos conceitos económicos.
A revista encontra-se disponível nas livrarias Letra livre (Lisboa) e Utopia (Porto) e provavelmente noutros lugares... Pode ser pedida para: 
Flauta de Luz - Boletim de topografia
Painel da Antiqueira, 39 – Vargem
7300-430 Portalegre.


2 comentários:

David da Bernarda disse...

Num momento em que a política e a economia se tornam uma obsessão para os cidadãos desesperados com a actual crise, é importante recordar que as sociedades humanas se debatem com problemas, de longo prazo, bem mais significativos: uso acrítico das tecnologias, consumismo compulsivo, ruptura das relações com o meio ambiente natural, megalópoles, crise ecológica, limite dos recursos naturais etc.
Para os velhos iluministas, ou iluminados, sejam os das classes dominantes, sejam os marxistas do Passa Palavra que chegam a identificar o discurso ecológico com o fascismo, a crença no Progresso não tem limites, por isso mesmo é importante que uma revista como a Flauta de Luz nos recorde que somos uma parte integrante da natureza, capaz de reflectir criticamente sobre a sua condição.

Anónimo disse...

Que reaccionarada inqualificável que ainda por cima nos é servida como ar fresco vindo do estrangeiro para benefício da mesquinhez lusa. Esta revista, ao contrário do que o David da Bernarda diz, equivale a meter a cabeça na areia e recusar-se a ouvir aquilo para que o Passa Palavra tão bem alerta: para um anti-capitalismo gangrenado pelo pensamento reaccionário. Felizmente, nem os portugueses nem os outros vão dar qualquer atenção a uma revista que lhes propõe algo bem pior que a austeridade actual. Lá terão que vender os exemplares entre feiras onde se cura com cristais e se promove boicotes contra o uso de animais em experiências. Todo um mundo baseado em pensamento mágico e teorias da conspiração.
Inimigo de Reaccionários de Esquerda e Arredores