05/05/14

Trabalhos de arqueologia ou as armas de papel de Pacheco Pereira




A frase de George Orwell, «Por que razão os donos do presente não serão também os donos do passado?» aplica-se como uma luva às versões oficiais da história deste país. Para além dos estudos que se vão produzindo no campo universitário, e que são pouco ou mal conhecidos fora desse meio, a vulgata da história que é servida pela comunicação social e por outros canais da cultura de massa é essencialmente a versão homologada pelos donos do presente. E é assim que, para ficarmos pelos anos recentes, a ruptura com o velho regime de natureza fascista que foi o salazarismo, os anos quentes da ruptura social que se seguiu ao golpe militar do 25 de Abril, são hoje reduzidos à implantação das instituições da democracia parlamentar, que foi, justamente, o processo que permitiu abafar a energia autónoma dos movimentos independentes, que nasceram e tomaram forma nos anos de 1974-75. A dimensão potencialmente radical do período foi ignorada pela história oficial. É esta mistificação que permite a um dos protagonistas centrais desta normalização, o caricato Mário Soares, fazer-se passar hoje por um dos últimos «revolucionários» de Abril, quando na realidade ele foi um dos coveiros das ideias e das práticas novas e radicais do período.
Mais ainda, a regra segundo a qual a história produzida para consumo dos dominados de hoje deve ser cozinhada pelos vencedores de ontem comporta uma outra consequência, a história dos vencidos deve também ser feita pelos vencedores.

Servem estas linhas de introdução a um rápido comentário sobre um livro recente que se debruça sobre as publicações e grupos ditos «radicais de esquerda cultural e política», dos anos 1963-1974, da autoria de José Pacheco Pereira. Mais precisamente, As armas de Papel. Publicações periódicas clandestinas e do exílio ligadas a movimentos radicais de esquerda cultural e política (1963-1974), Temas e Debates/Circulo de leitores, Lisboa, Março de 2013. Seiscentas paginas que se apresentam ao leitor como um exaustivo catálogo de publicações de grupos diversos, desde as variadas tendências do marxismo-leninismo até alguns raros grupos que no período se filiavam nas correntes do socialismo e comunismo antiautoritário. Num inesperado acesso de modéstia, o autor confessa tratar-se de «um trabalho de amador», como para se proteger do facto que, para além da compilação de textos, o volume é pobre em ideias e análise crítica.

Imaginemos um instante que o leitor desta nota é um astronauta de regresso à terra após uma longa viagem no cosmos, para quem o nome do autor do livro em questão é desconhecido. Comecemos pois pelas apresentações. José Pacheco Pereira foi deputado à Assembleia da República e ao Parlamento Europeu, vestindo sempre com brio a camisola do partido de direita, o PSD. Nos últimos tempos, provavelmente entristecido pelo fraco reconhecimento dos esforços que têm feito em pról do partido, Pacheco Pereira têm sido visto a namorar algumas múmias da velha esquerda saloia, Soares e outros, os quais se proclamam defensores “da constituição, da democracia e do Estado social”. Mais uma promessa de vigarices que só engana quém quer ser enganado. O facto é que, depois de ter sido generosamente remunerado pelas instituições políticas, o nosso homem mudou de contabilidade e passou a artista da cena mediática, protagonista incontornável da imprensa, rádio e televisão. Membro daquele cenáculo de «especialistas» que continuam incansavelmente, semana após semana, a explicar o presente aos que o sofrem e a aconselhar os donos do presente sobre o que há a fazer para salvaguardar os seus interesses. Como complemento cultural a estes tristes e monótonos afazeres, José Pacheco Pereira, é também Doutor, Historiador e Professor universitário. Ofícios múltiplos que lhe conferem um lugar de destaque no pequeno mundo do poder e da política lusitana. Aquele mundo que o Eça de Queiroz, no seu tempo – que continua a ser o nosso deste ponto de vista – referia assim: «Mas a náusea suprema [...] vem da politiquice e dos politiqueiros» (A correspondência de Fradique Mendes).
Inevitavelmente, virão ao espírito do nosso astronauta pertinentes interrogações: Por que razão tal homem se interessa por estas questões? Por que razão um indivíduo que frequenta os círculos do poder perde o seu tempo com a história dos vencidos? Um esclarecimento pode aqui orientar o leitor acabado de chegar de Saturno. P. Pereira foi um membro convicto e activo de uma das seitas da vanguarda marxista-leninista lusitana, ao mesmo título que o camarada Abel, nome de guerra do hoje adiposo presidente da Comissão Europeia. O autor destas linhas lamenta não possuir as competências necessárias para analisar em profundidade os mistérios destes percursos. Apenas se atreve a opinar, intuitivamente, que o interesse quase obsessivo que P. Pereira demonstra pelas correntes esquerdistas de ontem e radicais de hoje, se explicará melhor com a ajuda de Freud do que com a ajuda de Marx.
Há, no entanto, para além do insondável, algo mais a dizer. Muita dessa gente gosta de argumentar que, para ter podido aceder ao conforto da vida presente, foi obrigada a fazer uma ruptura para com o passado. Na realidade, não houve nenhuma ruptura, tudo foi, pelo contrário, uma santa continuidade. Continuidade de um percurso que se desenrola, do princípio até hoje, no território das relações de poder, de dominação. Por isso mesmo cabe rever estes conceitos de «vencedores» e de «vencidos». Porque se os vencidos só perderam aquilo a que aspiravam, muitos dos que hoje integram o clube dos «vencedores» perderam muito mais, o que de melhor neles havia para assegurar o acesso aos círculos do poder, ao mundo dos donos do presente.
A quase totalidade dos grupos e organizações catalogados no livro de P. Pereira estavam geneticamente focadas na ideia da tomada do poder político. Aos seus dirigentes e quadros bastou uma mudança de palco para que as suas aspirações se realizassem. E a sua passagem pelas organizações marxistas-leninistas mais não foi do que uma aprendizagem, uma escola de formação para integrar os novos quadros da casta política necessária à democracia parlamentar do pós-25 de Abril. Pelo caminho, ficaram, quais escórias abandonadas e desprezadas, militantes, proletários e outras gentes, generosamente crentes na possibilidade de um mundo diferente, abandonadas por chefes que mudaram de morada.
O elitismo vanguardista desta casta, formada na escola do maoismo é bem evidente no livro de P. Pereira, nas páginas do qual desfilam figuras gradas e dirigentes do esquerdismo, e onde raramente o militante anónimo tem direito a algumas linhas. Fiel a esta continuidade, P. Pereira reivindica hoje dirigir-se a um público seleccionado, que ele próprio descreve num artigo recente como, «gente de classe média, composta, educada, com profissões reconhecidas como sendo de elite» (JPP, «Por favor tirem-me daqui», Público, tribuna de 26 de Outubro de 2013). Se porventura alguns espíritos ingénuos imaginavam que as intervenções, crónicas e conferências de P. Pereira se destinavam ao pessoal do bairro do Lagarteiro no Porto ou do Alto da Galiza no Estoril, ficam assim as coisas esclarecidas!

Voltando ao livro, o tal «trabalho de amador», pensei eu, vai-se complicar quando P. Pereira se debruçar sobre os raros grupos que, nos anos 60, se posicionavam fora do esquema elitista e vanguardista do maoismo. Qual quê! Mesmo as páginas que lhes são dedicadas transpiram o pedantismo de salão. Assim, no capítulo dedicado aos Cadernos de Circunstância (pp. 221-229) lê-se: «Os Cadernos de Circunstância foram a revista mais influente no plano político-intelectual publicada na emigração, introduzindo nos seus textos uma atenção analítica que não era comum, assim como uma aproximação interdisciplinar e uma fundamentação estatística que traduzia as preocupações intelectuais dos seus autores» (p. 222). Pensávamos nós estar a forjar a arma da crítica contra o sistema e os seus falsos inimigos, quando afinal estávamos apenas, e sem o saber, a passar as provas de acesso à casta futura dos especialistas do saber. Finalmente, a revista e as brochuras que o grupo ia produzindo mais não eram que rubricas de um futuro vulgar curriculum universitário!
Fica-nos uma grande satisfação. P. Pereira falha lamentavelmente na sua tarefa de fabricar a nossa história. O que constituiu a especificidade e a originalidade dos Cadernos de Circunstância – e de outras raras publicações e grupos da mesma família – foi a ruptura com o vanguardismo patriótico do marxismo-leninismo nas circunstâncias históricas de senilidade do fascismo português e do horror da guerra colonial. Reduzir estas posturas novas e em ruptura radical com as práticas políticas da velha esquerda portuguesa, a exigências «interdisciplinares» e «fundamentações estatísticas» é de um cómico irresistível. Foi o interesse que o grupo dos Cadernos de Circunstância manifestou desde cedo para com as correntes do socialismo antiautoritário que permitiu a participação de vários dos seus membros nas práticas radicais de Maio 68. Este espírito, esta procura, esta exigência de uma actividade crítica colectiva, fora das ortodoxias partidárias e dos quadros institucionais, são praticamente ignoradas nas páginas do livro. Porque P. Pereira, obviamente, não tem a capacidade de compreender os conteúdos das correntes antiautoritárias, e os interesses dos meios sociais e políticos aos quais ele pertence e nos quais evolui são obstáculos adicionais a esta compreensão.

O livro de P. Pereira faz lembrar um museu de objectos inertes. Tal é decerto o objectivo primeiro de toda versão da história ao serviço dos donos do presente: exumar o passado como uma história morta, acabada, sem relação com o mundo actual. O pessoal encarregado desta tarefa possui o estranho dom de transformar em cadáver tudo em que toca. Por respeito de nós próprios, o mínimo que estará ao nosso alcance fazer é assumir a nossa própria história, não a abandonar nas mãos de estrangeiros à nossa causa. Com as nossas fraquezas, tributários que somos das vicissitudes da vida, o pouco que faremos será sempre superior ao que é feito em nosso nome. Para nós, este passado não está morto, ele integra o presente, no fio das aspirações humanas de emancipação social. Hoje, mais do que nunca, o único caminho alternativo à barbárie do mundo, onde P. Pereira e associados evoluem como peixes na água.


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Este texto foi publicado no numero 2 da revista Flauta de Luz.
Flauta de Luz ¤ Boletim de Topografia
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