23/10/14

"Verão árabe" na Tunísia?

Os resultados da "primavera árabe" de 2011 parecem desanimadores - a Síria, Iemén e Líbia em guerra civil, e o Egito com uma ditadura militar talvez ainda mais repressiva que o regime de Mubarak.

Mas e o país que deu início a tudo, a Tunísia? Comparada com os vizinhos, parece estar num caminho não muito mau - no próximo domingo irá haver novas eleições; não encontro referências a sondagens recentes (tirando esta, que demonstra um descontentamente com a democracia, mas não faz perguntas sobre intenções de voto), mas as que há (de julho) apontam para a coligação Nida Tounes (em termos europeus poderá ser classificada como "direita secular") ficar em primeiro, o Ennahdha (islamita) - os vencedores das anteriores eleições - em segundo e a Frente Popular (esquerda radical) em terceiro. A grande novidade aqui é mesmo, se estes resultados se confirmarem, talvez a primeira vez em que primeiro um partido islamita ganha umas eleições democráticas para as perder nas eleições seguintes, sem um golpe militar pelo meio. Provavelmente o facto de nas eleições anteriores os islamitas não terem tido maioria (e terem precisado de se coligar com dois partidos seculares) também ajudou - se não fosse isso, talvez a polarização entre o campo islamita e o secular tivesse sido maior, e talvez a crise que ocorreu com o assassínio de dois dirigentes da Frente Popular por terroristas salafitas (e que levou à demissão do primeiro-ministro islamita e à criação de uma espécie de governo de independentes) tivesse dado origem a um golpe de estado, como no Egito.

Uma explicação para o relativo sucesso tunisino poderá estar em, supostamente, ser um país mais secular do que a maior parte dos países árabes; mas creio que também poderemos contar mais dois factor: o sistema eleitoral, proporcional e ainda por cima creio que pelo método de Hare-Niemeyer, mais favorável às minorias do que o de Hondt (se as primeiras eleições tunisinas tivessem sido pelo sistema maioritário - como no Egito - ou mesmo pelo método de Hondt, os islamitas teriam obtido uma maioria esmagadora no parlamento); e a força dos sindicatos (ao contrário de países em que as únicas forças sociais relevantes são o exército e a religião).

Atenção que, embora eu refira que foi vantajoso para a manutenção até agora da democracia tunisina os islamitas não terem maioria no parlamento, não estou a dizer que o perigo viesse necessariamente de uma maioria islamita tentar acabar com a democracia - poderia também vir, como no Egito e, muitas vezes no século passado, na Turquia, das forças seculares, com medo dos islamitas, acabarem elas com a democracia.

Uma nota final - este meu post pode parecer muito "reformista": um "bom sinal" a consolidação de uma pura democracia representativa "burguesa", e em que ainda por cima a bipolarização é entre dois partidos de direita (um secular e cosmopolita e outro mais religioso e tradicionalista - na Europa, o mais parecido com isso seriam os partidos na Irlanda e na Polónia), com uma esquerda residual (bem, ao menos a FP é capaz de ter mais votos que o BE em Portugal)? Mas comparado com o que aconteceu nos outros países árabes, se calhar é o melhor que se pode esperar...

[Vamos lá ver, se para estragar o meu post, se na segunda-feira não se põem aos tiros uns com os outros]

ATUALIZAÇÃO (16:46) - afinal começaram já hoje

4 comentários:

Anónimo disse...

O integrismo salafista,teleguiado do Qatar e da Arábia Saudita, pode inviabilizar o curso da democracia pluralista tunisina, que joga o seu futuro nas Legislativas que decorrem no Week End. Parece existir uma maioria de esquerda contra o modelo económico europeu, se bem que se desconheça a extensão e contornos politicos da colossal divida real da economia tunisina. O que irá influir por bons e maus motivos a reacção da massa eleitoral heterógenea e representada em todos os segmentos do espectro politico- com os salafistas e a Esquerda Radical do Pólo Modernista a jogarem pela hegemonia, é evidente.Niet

Libertário disse...

O horizonte que a esquerda "radical" pós-moderna consegue abranger, com as suas vistas curtas, é o do espetáculo eleitoral.De eleição em eleição, aqui e por todo o lado...

Exigir o impossível? O pensamento único não o permite.

Anónimo disse...

Tem relativa razão na sua tese "radical " de recusa do eleitoralismo extremo liberal, e sempre conservador, o fogoso e acutilante Libertário. Só que, o caso concreto da situação politica concreta tunisina- saida de um terrivel processo ditatorial de mais de 40 anos-pode justificar o terçar de armas eleitorais na legalidade de um sistema constitucional multipartidário recentissimo. E o contexto regional- na Libia e Egipto vizinhos- também em nada ajuda na alternativa revolucionária de guerrilha urbana ou de greve geral...Salut! Niet

Holmes disse...

Parece-me que na busca das razões e, por fim, das conclusões, perdemos o estoicismo necessário para analisar a realidade do que ocorreu e tem vindo a acontecer. Afinal, ponderemos, a grande maioria dos resultados da suposta "Primavera Árabe" foi a escolha eleitoral de ideologias confessionalistas, o que na verdade me surpreendeu bastante, tendo em conta os movimentos de revolta e quem se integrou neles.

Tendo em conta tudo isso, e ainda o que ocorreu na Ucrânia, o sentido que me perdura é de uma visão demasiado novelesca associada a revolução contemporânea. Honestamente, ainda estou para ver uma que tenha, de facto, trazido estabilidade e prosperidade. Sendo que todos esses acontecimentos são representados, com algum anarquismo, por minorias, de modo algum representativas do quer quer seja - além da micro-geração que representam.