16/11/14

A censura na revista Análise Social e a sua "solução"

O acto de censura, por parte do Director do ICS, José Luís Cardoso, que visou um texto da autoria de Ricardo Campos, a publicar na revista Análise Social, é bastante conhecido. Foi amplamente divulgado, comentado e criticado (e, menos amplamente, defendido), e também aqui no Vias de Facto se tocou no assunto (aqui, aqui e aqui). Os mais distraídos podem saber mais através dos textos do José Neves e do António Monteiro Cardoso publicados no Público, do texto do Luís Trindade no iOnline, do texto do Nuno Teles no Ladrões de Bicicleta, ou, simplesmente,  pelas notícias do Público (esta, esta e esta) ou da TVI24. Por outro lado, podem ficar a saber menos ao ler este texto do José Manuel Fernandes no Observador.

Entretanto, retrocedeu-se na decisão de "suspender" o número em causa da revista, como foi ontem decidido e anunciado pelo Conselho Científico do ICS. A notícia é boa, obviamente. Mas a decisão vem bastante armadilhada, como se pode perceber muito bem através do comunicado que o Conselho Científico em causa divulgou a anunciar a decisão (disponível nesta notícia). Infelizmente, a julgar pela forma subtil como o comunicado reescreve a história e tenta resolver o assunto distribuindo o mal pelas aldeias, a decisão não parece derivar do reconhecimento da gravidade daquilo que se passou. E a saída, mesmo sem ter que implicar demissões, podia e devia ser outra. Tendo as coisas chegado a este ponto, e considerando tudo o que aconteceu, parece-me absurdo que se aja como se estivesse tudo igual ao que era antes ou como se tudo não passasse de um fait divers. Tudo se torna ainda mais preocupante se a comunidade académica que protestou firmemente contra o gesto de censura em causa (e que, sem dúvida, fez com que se voltasse atrás nesse gesto) aceitar a forma como se está a tentar encerrar este caso, ignorando tudo o que está subjacente a este episódio grave. E, para já, é o que parece estar a acontecer com muita gente envolvida nesse protesto.

Um acto de censura nunca é "apenas" um acto de censura. Este nunca pode ser entendido como um fenómeno isolado. A censura reflecte certas coisas que sob o manto da impunidade e da arbitrariedade são verdadeiramente perigosas. Logo, combatê-la não tem qualquer significado se não se perceber e combater aquilo que a torna possível. Neste caso particular, o acto não pode ser desligado de uma série de desigualdades de poder que permeiam a universidade e que têm afastado, cada vez mais, os membros da sua “comunidade” da discussão e das decisões que lhes dizem respeito. Isso foi notório, por exemplo, não só na decisão unilateral de tirar a revista de circulação e anunciar a sua destruição, mas também na forma como muitos investigadores e professores se viram obrigados a ficar calados com medo das represálias que podiam eventualmente sofrer, evitando pronunciar-se sobre o que aconteceu ou pronunciando-se no sentido de relativizar a gravidade do sucedido, defendendo até a decisão do Director.

Estas desigualdades são em grande parte internas, mas não podem ser desligadas do contexto mais amplo em que se inserem. Desde logo, no caso em questão também ficou particularmente clara a dependência crescente e a vulnerabilidade da universidade, e da sua produção crítica e científica, em relação a interesses que lhe são alheios e mesmo antagónicos (como o poder político ou o “mercado”). Com a enorme vaga de contestação que surgiu, a decisão de censurar a revista foi abandonada e a revista vai ser posta em circulação. O que é óptimo. Mas tudo aquilo que permitiu que tal coisa fosse sequer uma possibilidade, não mudou nem um milímetro. E diria até que corre o risco de ficar pior se se aceitar a “solução” que se arranjou e que ficou expressa no comunicado que foi publicado. É que uma outra forma de censura particularmente subtil, ou pelo menos dela algo próxima, é a reescrita da história. E o que o comunicado diz - parece que também com o propósito de não desagradar a certas pessoas - desafia uma data de factos importantíssimos. Pior: permite, além disso, notícias como esta, que não fazem mais do que levar até às últimas consequências aquilo que o mesmo comunicado expressa. É que a interpretação que esta notícia faz - tirando, talvez, um ou outro exagero entusiástico - parece-me ser bastante legítima face ao teor do comunicado. Espero, por isso, que ninguém se conforme com a “solução” inventada. E, infelizmente, estou a ver demasiada gente satisfeita…

4 comentários:

Paulo Marques disse...

"Por outro lado, podem ficar a saber menos ao ler este texto do José Manuel Fernandes no Observador."

Vou roubar essa frase e usá-la muitas vezes...

Libertário disse...

Neste interessante, mas pouco animado blog, não deixa de ser curioso como os inúmeros colaboradores parecem estar desinteressados dos vários escândalos públicos que estão a expôr a natureza deste regime, e do próprio Estado, muito mais do que todas as análises de anarquistas e anti-estatistas.

Alguém tem uma explicação para esta falta de motivação?

Lapa disse...

Com que voz chorarei meu triste fado !
Eis um libertário que necessita de uma explicação sobre a ausência de uma explicação que tarda em chegar. Venha ela, mesmo que não seja o grito da « populaça », mesmo que ela não ultrapasse a noção de legitimidade ou ilegitimidade dos governos sucessivos. Não será o estado de estupor que os deixa petrificados ? Não tenham medo de serem acusados de populistas se gritarem o vosso descontentamento ! Ouçam e sigam o exemplo do Dr. Mario Soares, sem medo, classificar de infâmia a maneira como funcionam as instituições.

Pedro Goulart disse...


A justiça burguesa e a prisão de José Sócrates

Pedro Goulart

A recente detenção e aprisionamento de José Sócrates levantou uma onda de choque, particularmente entre os seus correligionários e amigos. A indignação e as críticas focaram, não tanto a substância das acusações, mas em especial o modo como o aparelho repressivo de estado agiu neste caso. E, provavelmente, têm alguma razão em relação a este comportamento (às habituais fugas planeadas de informação, às amálgamas da acusação, às medidas de coacção inexplicadas, etc). Mais uma vez, a arrogância e a arbitrariedade do poder judicial ficaram aqui bem patentes. Pena é que muitos só protestem quando também lhes acontece a eles. Mas, sobre a arrogância e a arbitrariedade de alguma magistratura, do mesmo se poderão queixar, igualmente, vários elementos de outros partidos do regime.

Contudo, em relação aos assalariados e ao povo e, particularmente em relação aos “subversivos” (comunistas e anarquistas), a actuação do aparelho repressivo de estado atinge normalmente maior arrogância e brutalidade – quer a nível policial, judicial ou prisional. Quem já passou pelos cárceres do regime compreende do que falo. Uma coisa é certa: a legislação actual e o aparelho repressivo vigente são da responsabilidade das classes burguesas dirigentes, servem o patronato e são essencialmente dirigidas contra os trabalhadores. Assim, as classes dominantes burguesas, a que pertence o ex-primeiro ministro, não deviam ter muito de que se queixar – as suas leis também lhes podem ser aplicadas. Depende, em muito, das fracções da burguesia que dominam no momento.

Mas o grande mal disto tudo é que, no actual regime, esta gente (José Sócrates, Passos Coelho, Paulo Portas ou Cavaco Silva) nunca é realmente julgada pelo essencial das malfeitorias que pratica contra os trabalhadores e o povo. Assistimos, não poucas vezes, a guerras levadas a cabo apenas entre as diversas fracções da burguesia (com algumas vinganças de permeio) ou referentes a “ilegalidades” resultantes do habitual funcionamento do próprio sistema de exploração capitalista, como é o caso da corrupção. E, às vezes, as acusações de “ilegalidades” são guardadas em carteira para momentos oportunos. Contudo, na maior parte dos casos, após a agitação necessária, a montanha pare um rato.

Nunca é demais chamar a atenção: ao contrário do que as classes dominantes e os seus agentes nos pretendem inculcar, a justiça deles (a justiça burguesa) não é neutra, é uma justiça de classe!