15/04/15

Três citações do testamento de Charb


Charb era o director de Charlie Hebdo no momento do atentado que o vitimou, juntamente com outros dos seus camaradas. A essa data, estava a concluir um livro que rebatia as críticas que acusavam a revista de incorrecção política, dada a sua "islamofobia". Desse testamento,aqui ficam três excertos (traduzidos por mim daqui).

Os militantes comunitaristas que tentam impor às autoridades judiciais e políticas a noção de "islamofobia" não têm outro objectivo que não seja impelir as vítimas do racismo a afirmarem-se como muçulmanos (…) Se amanhã os muçulmanos de França se converterem ao catolicismo ou renunciarem a professar qualquer religião, isso em nada mudará o discurso dos racistas: esses estrangeiros ou esses franceses de origem estrangeira continuarão a ser apontados como responsáveis de todos os males.

(…)

Em virtude de que retorcida teoria o humor seria menos compatível com o islão do que com qualquer outra religião? (…) Se dermos a entender que se pode rir de tudo, excepto de certos aspectos do islão porque os muçulmanos são muito mais suceptíveis do que o resto da população, que estaremos a fazer senão discriminação? Seria já tempo de acabar com este paternalismo repugnante do intelectual burgu~es branco "de esquerda" que procura afirmar a sua existência junto de "pobres infelizes sub-educados".

(…)

Em 1931, existiria um terrorismo internacional que se reclamasse do judaísmo ortodoxo? Haveria djiadistas judeus que ameaçassem instaurar o equivalente da charia na Líbia, na Tunísia, na Síria, no Iraque? Algum rabino Ben Laden fizera um biplano esmagar-se contra o Empire State Building? (…) Não, a islamofobia não é o novo anti-semitismo. O novo anti-semitismo não existe — o que existe é o velho racismo hediondo e imortal. Um racismo do qual são vítimas populações de origem muçulmana.

7 comentários:

joão viegas disse...

Ola,

Percebo o que ele quer dizer, mas discordo num ponto essencial. Caricaturar é bem, deve ser um direito protegido pela ordem juridica, sem quaisquer concessões (salvaguardando apenas o caso de abuso, que consiste em desvirtuar a caricatura enquanto arte), isso não esta em causa.

Mas tal não obsta a que a caricatura do adversario, no debate de ideias, possa ser pouco convincente. E estamos nitidamente num casos destes.

As pessoas que lutam contra a islamofobia, pelo menos as que conheço (e conheço algumas), não reclamam, nem um privilégio, nem um tratamento especial para o Islão. Este deve ser tratado como qualquer outra religião. E se os caricaturistas como o Charb não tivessem, por vezes, o que é humano, agitado a bandeira em vez de procurar ter uma visão inteligente da situação, caindo assim no defeito que eles criticam nos outros, se calhar ter-se-iam apercebido de que a esmagadora maioria das vitimas da "islamofobia" não quer outra coisa do que a plena igualdade.

Portanto a investida do texto contra o "tratamento de favor" pretensamente reclamado pelo Islão, quanto a mim, é um tiro ao lado.

As pessoas que lutam contra a "islamofobia" (ou pelo menos a maior parte delas, cf. supra) lutam contra uma coisa simples, evidente e quotidiana : o branqueamento do racismo anti-arabe (e anti imigrante) atravês de uma concepção radical, e radicalmente errada, da laicidade, que esquece completamente que a laicidade parte de um pressuposto de tolerância. E que esquece também que, sem este pressuposto, ela seria completamente inaceitavel.

A critica contra o Islão, ou contra qualquer religião, deve ser completamente livre, desde que se situe no campo do debate de ideias. Não ja quando passa ao ataque de pessoas por aquilo que eles são, ou por causa daquilo em que elas acreditam.

Charb teria talvez alguma razão se não existisse o branqueamento de que falo. Mas infelizmente ele existe e não é marginal. Ignora-lo, contrariamente ao que pode parecer, não é prestar nenhum serviço à liberdade de expressão. Antes pelo contrario.

Finalmente, ha outra coisa, que julgo preocupante neste tipo de lamento. Ha um obvio exagero quando ele diz que as pessoas que protestam contra a islamofobia não passam de militantes "comunitaristas" (palavra completamente vazia de sentido, o que é problematico para quem pretende instalar-se no debate de ideias) que procuram apenas converter pessoas ao Islão. Isto é falso. O que é verdade, e que devia dar que reflectir, é que os oprimidos de hoje têm tendência para se virar para a religião PORQUE NAO ENCONTRAM EXPRESSAO POLITICA PARA O SEU DESESPERO.

Quem é responsavel por isso não é nenhum "comunitarismo", nem nenhum papão. Infelizmente, neste particular, Charb cai directamente na esparrela armada pela direita mais retrograda. E' pena...

Em resumo : ele foi capaz de dizer coisas bastante mais acertadas do que as que aqui estão.

Abraço

joão viegas disse...

Um acrescento apenas :

O ultimo paragrafo, então, é completamente surrealista. Havera maneira de compreender outra coisa do que uma acusação perfeitamente idiota, dirigida a todas as pessoas que se batem contra a islamofobia, de serem a favor do terrorismo do Bin Laden ? Desculpem, mas isto é um amalgama completamente inaceitavel.

Vou mesmo mais longe, havera ilustração mais perfeita da profunda realidade daquilo que combatem as pessoas que lutam contra a "islamofobia" ? Ou seja precisamente o facto de os muçulmanos serem hoje olhados, todos sem distinção, como inimigos em potência que escondem uma bomba nas vestes ?

Mais uma prova daquilo que digo : as caricaturas de pessoas são completamente aceitaveis quando visam a promover o debate de ideias, ja as caricaturas de ideias, podem ser infelizes quando escondem mal o desprezo de pessoas.

Abraço forte

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João,
concordo com muitas das coisas que dizes, mas não me parece que acertes no juízo que emites sobre os excertos de Charb.
Um exemplo — fácil de extrapolar sem distorções — talvez ajude a tornar mais claro o que quero dizer. Tu escreves: "Charb teria talvez alguma razão se não existisse o branqueamento de que falo. Mas infelizmente ele existe e não é marginal. Ignora-lo, contrariamente ao que pode parecer, não é prestar nenhum serviço à liberdade de expressão. Antes pelo contrario". Tens razão, sem dúvida. Mas Charb não denuncia precisamente operações de branqueamento do racismo do mesmo tipo?
E, depois, se eu disser que os muçulmanos devem ter direitos enquanto cidadãos e aceitar que, nesse plano, a cidadania prima sobre a religião, recusando-me a admitir que o ser muçulmano ou cristão garanta direitos ou discriminações positivas, estarei a ser islamófobo? Pode ser que sim, aos olhos dos crentes e dos defensores dos direitos particulares dos crentes mas, nesse caso, a minha "islamofobia" é tributária do meu compromisso com a prioridade da democracia.

Um abraço

miguel(sp)

joão viegas disse...

Ola Miguel,


O meu unico, mas importante, ponto de discordância tem a ver com facto de ele excluir, por principio, que as pessoas que protestam contra a islamofobia possam estar, simplesmente, a reclamar igualdade, com tudo o que ela implica. Posso garantir-te que esta exclusão por principio esta muito longe de corresponder à realidade e, alias, basta ver quais são os fundamentos juridicos das queixas : invariavelmente o principio de igualdade e a proibição das discriminações (proibição que é o reverso do principio de igualdade ; a este proposito, cabe sublinhar que a expressão "discriminação positiva" é ambigua, e alias muita gente prefere não a usar por causa disso, mas esse problema terminologico diz respeito a todas as discriminações e não é proprio do assunto que nos ocupa).

O que se refere habitualmente por "islamofobia" dificilmente pode definir-se como visando a garantir o primado da cidadania sobre a religão. Ou então, por definição, não poderia combater-se nos tribunais ("às autoridades judiciais")... Quanto ao resto, penso que o facto de reconhecer que a pessoa humana tem crenças religiosas que merecem ser respeitadas não equivale a conferir-lhe qualquer privilégio. Trata-se apenas de um corolario natural do respeito pela pessoa, com as suas crenças, as suas opiniões etc.

Resumindo de outra maneira : concordo com tudo o que TU escreves no teu comentario mas, infelizmente, tenho sérias duvidas que seja isso que o Charb diz nos três excertos que traduziste no post. Senão vejamos :

"não têm outro objectivo que não seja impelir as vítimas do racismo a afirmarem-se como muçulmanos" : falacia total ; ha luta contra a islamofobia precisamente porque o racismo não avança hoje a descoberto, mas antes atravês de uma pretensa luta contra o islão intolerante e agressivo "por natureza", não porque o seja mesmo (por exemplo em relação a outras religiões), mas porque é a religião dos pretos e dos arabes (penso que posso dispensar-me de dar exemplos).

"Em virtude de que retorcida teoria o humor seria menos compatível com o islão do que com qualquer outra religião ?". Retorcida sem duvida. Por falar nisso, onde é que ele viu semelhante afirmação ? Por parte de quem ? Quando ? E quem é que defende que os muçulmanos seriam "mais susceptiveis" do que o resto da população. O que eles dizem é que são menos bem tratados, o que é bastante diferente...

Finalmente, quanto à parte sobre o terrorismo, remeto-te para o meu comentario acima. Para além disso, a referência ao terrorismo judaico é uma refinada aldrabice intelectual. Estamos a misturar duas coisas : uma é observar que o terrorismo esta longe de existir apenas entre os fanaticos muçulmanos (convém lembra-lo no intuito de combater o amalgama), a outra é a questão batida, e algo teologic, da ilegitimidade do terrorismo em absoluto. Ha aqui um "raccourci" que julgo bastante problematico, sobretudo em França onde, que eu saiba, a extrema direita tem votações ligeiramente superiores ao partido do djiad islâmico...

Por supreendente que seja, a fronteira entre libertario e liberticida pode ser ténue.

Abraço

Anónimo disse...

O " testamento " de Charb tem marcas de grande qualidade e precisão teórica e politica. Mas não queria( ou podia?) distinguir a árvore da floresta: é uma minoria esquizofrénica que manipula dos grupos Jidahistas,que tentam amalgamar e confundir os crentes do Corão na opção falsa pelo assassinato dos judeus e não-crentes. Creio, como Etienne Balibar, que o Charlie Hebdo fez sempre uma " sã provocação " ao Islão, mas foram- como sublinha -imprudentes " nos dois sentidos da palvra " e," eventualmente indiferentes sobre as consequências desastrosas de uma sã provocação ". Eu há muito que leio o Canard Enchaine, que considero um hebdo fantástico e um sucesso editorial- grandes reportagens e análises de grande qualidade sobre os crimes de corrupção politica e económica da élitepolitico-partidária francesa com tentáculos universais...- e financeiro quase único no Mundo, hoje. Niet

joão viegas disse...

Caro Niet,

Lembro-me muito bem desse texto do Balibar, que achei notavel e corajoso e que, nalguns aspectos, vai muito mais longe ainda do que eu naquilo que é muitas vezes apresentado como uma atitude "complacente".

Como é obvio, o que digo acima não tira absolutamente nada às muitas qualidades do Charb e dos outros membros do Charlie. Nem alias ao facto de ele estar, obviamente, de boa fé quando escreve aquilo que critico acima.

Se um dia eu escrever um tratado sobre historia das religiões (isto é retorico, podem ficar descansados), ele ha de começar com a frase : "os erros mais persistentes, e também os mais prejudiciais, são os cometidos de boa fé".

Ora bem, o problema com o racismo é que ele é quase sempre de boa fé. Convém lembrar, alias, que o racismo começou por reclamar-se da ciência...

Abraços libertarios...

PS : Ja agora, obrigado por me ter indicado a pequena livraria da rue Gay Lussac, aqui mesmo ao pé. Uma mina... (embora neste momento não tenha Castoriadis, não sei por que razão, os livros dele que antes abundavam, deixaram de se encontrar facilmente).

Anónimo disse...

Carissimo: Os livros do Castoriadis estão a ser republicados na editora du Sandre. Já estão publicados cinco volumes gigantescos pela fabulosa equipe " criada " à sombra do Casto.A piada é que a textura dos voluemes faz lembrar a das OCompletas do Bakounine, que Casto nunca desprezou, ele mais trotsquista de base inicialmente... É só ir à livraria...Ou a Jussieu na cour da Fac. talvez sejam mais baratos; ou nos bouquinistes entre a ponte St. Michel e a Rue de La Seine, onde há novidades a 50 por cento...Prezo a memória da equipe do Charlie, terrivel e selvaticamente assassinada, mas gosto mais do Canard há longos anos. Aliàs, o Cabu, e outros cartonistas, publicavam também no Canard, que está a republicar alguns dos grandes cartoons dos artistas mortos com toda a barbarie inimaginável.Acho que o fabuloso Jacques Rancière publicou também um texto sobre o infausto e dramático acontecimento de 7 de Janeiro.Mas perdi-lhe o rasto...Liberté et égalité. Salut! Niet