21/07/16

A tolerância cristã

É por vezes afirmado que o cristianismo será uma religião intrinsecamente mais tolerante que outras (nomeadamente o islamismo).

A respeito disso, é interessante comparar com a situação das religiões pré-islâmicas no mundo muçulmano - aí, yazidis, mandeus, zoroastrianos, cristãos coptas e siríacos, etc., são frequentemente vítimas de perseguições, assassínios, violações, conversões forçadas, etc. 

Já na Europa cristã, as religiões pré-cristãs são... o que é que foi feito delas mesmo? 

Tirando duas exceções (os judeus e alguns animistas numa remota região russa), parece-me que foram completamente varridas do mapa; pode-se argumentar que a diferença é que o cristianismo teve mais séculos para converter/exterminar outras religiões, mas mesmo em zonas só recentemente cristianizadas (como a Lituânia, que tem pouco mais de 600 anos de cristianismo) não há qualquer sinal de "paganismo" (tirando revivalistas modernos).

Mas algumas ressalvas:

- Provavelmente, a sobrevivência até a atualidade de comunidades religiosas pré-islamicos não resultou de nenhuma "tolerância" mas de racismo: nos primeiros séculos do Islão (sobretudo durante os califas omíadas), dominava a ideia de que o islamismo seria uma religião para os árabes, pelo que havia pouca preocupação em converter povos "inferiores" (que como infiéis até pagavam mais impostos).

- Creio que ninguém contestará que o cristianismo é provavelmente a religião mais tolerante hoje em dia (excluindo talvez algumas religiões tão minoritárias que não conseguiriam ser intolerantes mesmo que quisessem); o que estou pondo é causa é que essa tolerância seja algo essencial, e não apenas um acidente histórico dos últimos 200 ou 300 anos.

2 comentários:

Libertário disse...

O texto não clarifica que a tolerância, e a intolerância, das grandes religiões monoteistas passaram por diversas fases ao longo da história. Sendo o Islão, curiosamente, bastante tolerante na época da Idade Média europeia ao contrário do cristianismo obscurantista, basta pensar no Al-Andalus e Averroes.
No entanto, na época contemporânea houve, e está ainda a ocorrer, uma inversão: o cristianismo pressionado pelo iluminismo e livre pensamento posterior à Revolução Francesa, e de alguma forma pelo pensamento científico, foi obrigado a se abrir ao pluralismo e à tolerância. As sociedades muçulmanas sendo menos abaladas por estas mudanças sociais, a não ser na fase das lutas pelas independências nacionais, mantiveram-se dentro de uma tradição religiosa fundamentalista e intolerante pré-moderna. Mas a questão central é se as pessoas que vivem nessas sociedades condicionadas pelo Islão são capazes, ou não, de questionar o autoritarismo e fanatismo religioso e lutarem por introduzir nessas sociedades a liberdade de pensamento, a exemplo do que aconteceu na Europa dos séculos XVIII ao XX, e afinal na tradição desse passado brilhante da época de Averroes.
Uma nota final, não é muito correcto dizer " creio que ninguém contestará que o cristianismo é provavelmente a religião mais tolerante hoje em dia". Na verdade o cristianismo inclui uma infinidade de igrejas e seitas completamente distintas no que se refere ao seu discurso e prática social. O catolicismo, e diversas igrejas pentecostais, são ainda muito intolerantes e algumas fanaticamente fundamentalistas, apesar do Concílio do Vaticano II e deste Papa Francisco no que se refere aos católicos, sendo um facto que algumas igrejas protestantes históricas são bastante mais avançadas na forma como lidam actualmente com as questões de género, homosexualidade, pacifismo etc...

Frei Beto disse...

«A espiritualidade islâmica é rica em tradições místicas, como os sufistas. “O sufi é um bêbado sem vinho; um saciado sem comida; um tresloucado sem alimento e sono; um rei em manto humilde; um tesouro dentro de ruína; não é feito de ar, terra ou fogo; é um mar sem limites” (Rumî [1207-1273]). Os poemas de Rumî são de profunda densidade espiritual, o que faz pensar que talvez tenham sido lidos por místicos cristãos como Mestre Eckhart e João da Cruz.

Fomentar o preconceito aos muçulmanos é ceder ao jogo maniqueísta do terrorismo e rechaçar uma tradição rica em sabedoria e espiritualidade. Há que separar o joio do trigo. E convém recordar que foi o Ocidente “cristão” que exterminou os indígenas da América Latina, promoveu a escravidão, expandiu o colonialismo, desencadeou duas Grandes Guerras e, hoje, idolatra o capital acima dos direitos humanos.»

Frei Betto

http://oglobo.globo.com/sociedade/espiritualidade-muculmana-19769814