03/07/16

Sobre a Caixa de Pandora do racismo celebratório.

Vale a pena ler a Crónica da Alexandra Lucas Coelho, hoje no Público. (sublinhados meus)

"(...) E onde está a esquerda entretanto? Era mesmo esta oportunidade que a esquerda anti-UE queria, ou achava que podia ser um mal menor? Um "Brexit" que no mínimo é irresponsável, no máximo fascista? Em Portugal, de resto, entre uma direita e um centro que não admitem o retrato completo do que foi o Império Português (com os seus quase seis milhões de escravos, o seu extermínio indígena, a sua exploração sem construção, que só no Brasil durou mais de trezentos anos), e uma esquerda que apenas vê bem ao perto, e parece brincar às casinhas, o nacionalismo pode servir-se de quase tudo e do seu contrário. A UE não é da troika nem de Schäuble, antes de mais é uma ideia. E quando desistirmos dessa ideia será só dos funcionários, aqueles com que se faz a banalidade do mal.(...)"

13 comentários:

Pedro Viana disse...

Caro josé guinote,

O artigo de opinião da Alexandra Lucas Coelho é dum enorme indulgência, típica duma certa "esquerda" para quem as comodidades e o individualismo resultantes do sistema capitalista global são mais importantes que questões “menores” como a democracia e a instauração dum sistema sócio-económico mais justo (e por conseguinte mais igualitário). São aqueles que sofrem muito com os desapossados, aos quais gostariam de dar muitas coisas, menos a dignidade de escolherem os seus caminhos e receberem o justo valor pelo trabalho que realizam (não vá tal por em causa o sistema de que tanto beneficiam). Porque, na verdade para essa certa "esquerda", os desapossados são brutos, feios e (potencialmente) maus. Uns coitados que se podem tornar perigosos, não se lhes vá dar demasiada trela.

Essa "esquerda" não é capaz de conceber uma outra Europa, porque se sente muito confortável nesta Europa, na União Europeia:

"(...)Não quero que a UE acabe, não quero sair da UE(...)"

E apela às elites no poder que ignorem um acto inegávelmente democrático, como o foi o referendo britânico:

"Se o "Brexit" ainda é reversível, valerá a pena pensar nisso."
"Se o referendo, por si, não é vinculativo, e a maioria do Parlamento é anti-"Brexit", não será impossível que seja vetado. Por alguma razão John Kerry sugeriu que o "Brexit" ainda tem retorno(...)"

Em particular, entre essas elites, apela à sua "esquerda", acima descrita, que empurre Corbyn para fora da liderança do partido trabalhista, cuja defesa duma sociedade mais justa vale pouco perante a sua fraca crença nas virtudes da União Europeia (volta Blair, estás perdoado!…)

“(…)O Partido Trabalhista tem um líder tão pouco convicto do Remain que só ajudou o Leave e teima em manter-se no posto, apesar de toda a gente o empurrar.(…)”

Aliás, acredito que haja quem esteja a pensar na possibilidade de ser o partido trabalhista (para o partido conservador seria impossível), após ganhar as eleições, a propor um novo referendo (talvez depois de "negociar" com a UE modalidades alternativas à pertença, que seriam postas a votação em conjunto com a manutenção da pertença à UE). Mas para isso Corbyn teria de ser afastado.

Alguém que é obviamente a favor do euro, independentemente das suas regras e da destruição sócio-económica que provocam,

"Não sou contra o euro nem “a perda de soberania nacional”."

e que só sabe, claro,

"(...)o que é soberania individual(...)"

porque a esta "esquerda" tudo o que seja colectivo ou comunitário cheira a mofo. O esplendoroso sistema capitalista não é opressivo, para eles, que podem gozar de liberdade de movimento e possuem instrumentos que lhes possibilitam prosperar nesse sistema, à custa dos brutos, feios e maus, que não compreendem como a globalização capitalista é tão bela nas possibilidades que abre ao indivíduo. Opressivo, claustrofóbico, é para eles um lugar, uma aldeia, uma fábrica, onde todos se conhecem, onde trabalham juntos, apoiam-se, criticam-se, constroem vidas em conjunto. E sim, às vezes são (também) injustos uns para os outros.

(cont.)

Pedro Viana disse...

(cont.)

Uma "esquerda" sempre "ingénua", que continua a acreditar que a UE foi construída para

"representar democracia, direitos humanos, diluição de fronteiras, livre circulação de pessoas, abertura a imigrantes e refugiados, empenho contra o que violenta gente mundo fora, uma inspiração para a paz"

e que

"A UE não é da troika nem de Schäuble, antes de mais é uma ideia."

Seria ridículo se não estivéssemos em tempos demasiado sérios. A UE foi construída para assegurar o desenvolvimento do capitalismo globalizado, primeiro através da construção dum mercado único (que requer a possibilidade de migração da força de trabalho), que permitisse às empresas europeias ganhar a escala necessária para poderem competir num mundo que já se antevia globalizado. A oposição à União Soviética foi outro factor. Não será demais lembrar que os EUA foram desde sempre entusiásticos apoiantes da UE.

Uma "esquerda" que está sempre pronta para apelar à responsabilidade

"Um "Brexit" que no mínimo é irresponsável, no máximo fascista?"

o que na prática equivale a um apelo a deixar tudo na mesma: não se podem fazer demasiadas ondas, senão o sistema cai e é pior (para "nós"). Antes um sistema elitista que "nos" beneficia, do que o desconhecido.

(cont.)

Pedro Viana disse...

(cont.)

Uma "esquerda" que se acha "nova", "arejada", e que por isso idolatra a "juventude". Os velhos, tal como para os seus companheiros cosmopolitas neo-liberais (que os também acham uns parasitas económicos), são brutos, feios e (por vezes) maus. Se calhar não deviam votar, ainda para mais sobre assuntos com impacto no futuro (e quais não têm?...). Um dos aspectos mais repugnantes que traspassou do discurso de ódio contra quem se atreveu, porque que razões fossem (e uma parte muito significativa, senão a maioria não foi anti-imigrante, como estudos pós-eleitorais comprovam - vide Guardian) a votar pelo "Brexit", foi esse ataque aos velhos. Ao seu direito à palavra e à intervenção no espaço público. Como se atreveram a "roubar" o futuro aos jovens?

"Se o "Brexit" estivesse nas mãos dos eleitores jovens, não haveria "Brexit", e isso dá-me esperança. Menos mau que o racismo seja mais velho do que novo."

Talvez devessem reflectir sobre a possibilidade dos velhos votarem a pensar nos jovens. Afinal porque se dariam ao trabalho de votar, às vezes com grande dificuldade pessoal (ao contrário dos arejados jovens, para quem a democracia é uma chatice), sabendo que há uma possibilidade significativa de não acordarem amanhã?

Sim, os racistas sentiram-se motivados com o resultado do referendo britânico. Em parte, porque houve muita gente com interesse em acentuar essa motivação por detrás do Brexit. Porque não queriam que a outras motivações fosse dado igual tempo de antena. Afinal a pobreza, a decrepitude do sistema educacional e de saúde, a implosão social, são temas que quem está no Poder não quer discutidos. Há uma certa "esquerda" que acha que as pessoas se tornam racistas porque "querem", partilhando a sua convicção na "liberdade individual, de escolha" com a direita, em particular a neo-liberal, para quem só existem pobres porque assim "querem" ser. Afinal, tanto para uns como para outros, bastaria um pequeno esforço pessoal para passarem a ser "empreendedores politicamente correctos", bem integrados na cultura dominante, esculpida à medida do capitalismo global em que vivemos.

Abraço,

Pedro

joão viegas disse...

Olá,

Eu acho que o artigo, embora num tom emocional por vezes um bocado desajeitado, põe o dedo na ferida. Está à vista que a opção do Brexit foi escolhida, numa larga medida, por pessoas que não encararam a alternativa de forma responsável. E’ o problema dos referendos : as pessoas são incentivadas a dizer que são contra, sem medir quais são as consequências. Isto encoraja o voto irresponsável. No caso Britânico, as pessoas votaram contra uma realidade que não existe (não há ainda Europa federal) em nome de outra que ninguém parece ter encarado com seriedade. A melhor prova é que os principais apoiantes do Brexit fugiram a correr logo que souberam do resultado. Dizer que se tratou de uma vitória da democracia é, no mínimo, paradoxal. A democracia não equivale ao direito de protesto sem consequência…

E também não vejo porque é que o Pedro Viana diz que o artigo “desculpa as elites”. Que eu saiba, a ideia do referendo partiu das tais “elites” e o primeiro responsável pela situação é Cameron. Nem o artigo nem ninguém ignora isto. Portanto o referendo é, acima de tudo, uma séria advertência aos demagogos aprendizes de feiticeiro e, como sabemos, eles não escasseiam entre os pseudo-partidários da Europa, que dizem ser a favor, mas que são os primeiros a apontar para a tirania de “Bruxelas” quando se trata de ocultar as consequências das suas escolhas políticas.

Tenho pena, mas o discurso da “democracia” nacional contra a ditadura das “elites” internacionais parece-me uma total falácia. Foram, e são, as democracias nacionais que decidiram construir uma Europa democrática e mais forte do que as nações europeias, nomeadamente em termos económicos, para que todos os cidadãos europeus dela pudessem beneficiar. Ninguém disse que seria fácil e ninguém ocultou o que havia de arriscado e de aleatório na escolha dos fundadores de começar pela união económica. Fingirmos descobrir hoje que haveria em seguida um passo necessário para chegarmos a uma união política, única capaz de cumprir a promessa de uma Europa democrática (a não ser para quem acredita nos milagres do deus-mercado) é, também, uma forma de desrespeito do voto popular e, mais concretamente, do voto de todos aqueles que, em maioria, durante décadas, nomeadamente nas esquerdas, escolheram enveredar pelo projecto europeu.

Somos livres de protestar, e mesmo de destruir um projecto no qual apostámos durante décadas. Isto não está em causa, e ainda bem que somos. Agora daí a aplaudir um voto que é de puro desespero e que não parece apontar para nenhuma alternativa minimamente pensada, vai um passo que julgo bastante problemático.

Lembro que nos passados referendos, o protesto da esquerda, muitas vezes de boa fé, era em nome do famigerado safanão que iria ser a alvorada de uma outra Europa. Bom, a Alexandra Lucas Coelho, julgo eu, está apenas a perguntar onde é que está a tal europa do plano B, agora que o Brexit ganhou. Acho uma boa pergunta. Quem acredita que o mercado comum com o RU vai desaparecer amanhã ? As empresas britânicas vão renascer com uma dimensão nacional e vamos assistir à emergência de um RU “orgulhosamente só” ? Obviamente que não.

A única consequência do Brexit vai ser tornar um pouco mais difícil o aprofundamento da democracia europeia e a (necessária) transição das formas de poder e de controlo democrático para o nível onde se exerce o poder económico. Grande vitória da esquerda…

Abraços

José Guinote disse...

Eu agradeço ao Pedro Viana o esforço para me ajudar a perceber o "tempo e o modo" que subjazem ao artigo da Alexandra Lucas Coelho. Não correspondo ao esforço, devo dize-lo. Volto a referi-lo pela clareza do que enuncia -que eu destaquei porque quis- e porque a pergunta permanece sem resposta: o que queria a esquerda que celebrou o Brexit? Não me volto a repetir sobre as varias razões que já aqui aduzi para explicar porque defendo a UE e a sua reforma. Isso não se consegue com a canalha xenófoba que liderou a direita e a extrema direita inglesas, e que agora, como refere o João Viegas, se põe ao fresco porque nada tem para apresentar.

Pedro Viana disse...

Bom dia,

Gostaria de reafirmar que não vejo a opção pelo Brexit como uma vitória. No entanto, merece o meu respeito enquanto decisão democrática. Um referendo é um processo inegavelmente mais democrático do que aqueles que são seguidos todos os dias por eleitos não revogáveis, que constantemente traem o que prometeram em campanha eleitoral. Um referendo não é, no entanto, o processo mais democrático, por comparação por exemplo com assembleias de cidadãos escolhidos aleatoriamente ou eleitos para mandatos revogáveis. Porque as distorções no acesso à informação são maiores, porque é mais difícil de reavaliar, porque o corpo de votantes efectivos acaba por ser menos representativo. Mas, repito, no sistema actual são o acto mais democrático. Quer se goste quer não dos seus resultados. E a "prova" é evidente no facto de ser muito mais provável uma decisão contra as elites que nos "governam" através dum referendo do que através de eleições parlamentares.

A ideia do referendo nunca foi consensual entre as elites. Um fração achava que a pressão do UKIP (que não faz parte das elites) estava a tornar-se insustentável para o sistema, e outra achava que o referendo seria um risco desnecessário. Só um muito pequena minoria, como se viu durante a campanha, queria o referendo para defender o Brexit. A Alexandra Prado Coelho apela várias vezes às elites, nomeadamente à burocracia política do parlamento britânico, em particular aos membros do partido trabalhista, para fazerem o que for necessário para reverter a decisão referendada, incluindo a remoção do líder mais à esquerda do partido trabalhista em várias décadas.

Não defendo a "democracia nacional", como tenho deixado claro. Nem será necessariamente uma consequência do referendo. Que podem ir desde "tudo ficar na mesma" com um novo referendo daqui a 2 anos, como à fragmentação do Reino Unido, e um abalar do sistema capitalista capaz de criar condições para uma política alternativa. O futuro está em aberto. Aliás, uma esquerda que realmente queira transformar o sistema sócio-económico em que vivemos não pode mencionar responsabilidade sem referir também que é por vezes necessário arriscar. Nunca nenhum sistema sócio-económico foi substituído sem que tivesse passado por uma situação de crise, ou choque. Portanto, apelar à responsabilidade, por si só, acaba por ser uma defesa do status quo. Deste ponto de vista, o voto de milhões de pessoas desesperadas com o seu dia-a-dia, sendo "irresponsável", na medida em que é um voto no desconhecido (e muitas estavam perfeitamente conscientes disso), é também um voto na esperança dum futuro um pouco melhor, sabendo que há um risco de também ficar pior (mas que vale a pena correr). Não há plano B. Nem haverá. Nem é desejável que haja. Os planos B são sempre resultado de directórios auto-instituídos, liderados por "iluminados". A verdadeira transformação resultará de inúmeros actos, individuais e colectivos, mais ou menos planeados, adaptando-se às circunstâncias à medida que estas se tornem claras.

Abraços,

Pedro

joão viegas disse...

Bom, eu não comungo da mesma fé no referendo, que considero uma medida que so faz sentido em circunstâncias muitos especiais e um verdadeiro perigo quando mal utilizado.

Mas, sobretudo, não vejo como o caso do Brexit possa ser um exemplo dos méritos do referendo, ou do seu caracter democratico. Com efeito, aquilo que estamos a ver é que o voto dos Britânicos, que deve naturalmente ser respeitado, carece totalmente de legibilidade e isto em grande parte porque os promotores da iniciativa tudo fizeram para evitar debater de forma clara e verdadeiramente informativa quais seriam as consequências. O voto significa que o RU vai abandonar o mercado comum e restabelecer fronteiras com pautas aduaneiras ? Então onde estão as ofertas politicas que propõem ir neste sentido e que perspectivas têm elas de vir a governar ? O voto significa antes que os britânicos querem ter um pé dentro e um pé de fora (como, de certa forma, sucedia) ? Mas, claramente, não é isso que ele diz, nem se vislumbra como é que os parceiros europeus poderiam dar-lhe este significado ! Os Britânicos querem então construir outra Europa alternativa, com outras bases, tipo EFTA ou coisa que o valha ? Mas vão fazê-lo como, sozinhos ?

Somos todos a favor da responsabilização dos eleitos e de mecanismos de controlo que assegurem que as instituições democraticas não sejam desvirtuadas. Mas não vejo como é que pode contribuir para tal um voto puramente negativo, que não assume nenhuma alternativa e que se apresenta apenas como uma birra irresponsavel.

Acho muito bem sermos contra as elites, mas muito melhor lembrarmo-nos que as elites, em democracia, são eleitas e que, em principio, devia estar nas nossas mãos deixar de eleger aquelas que não queremos mais. O referendo pode ser bom nalguns casos, mas pode também ser parte integrante dos mecanismos perversos que acabam por obscurecer a responsabilidade politica dos representantes eleitos e contribuir para os males de que o Pedro se queixa. E eu diria que o que se esta a passar hoje no RU é uma muito boa ilustração deste risco. Dificilmente podemos conceber um caso em que as perspectivas politicas abertas pelo voto se anunciam mais distantes daquilo que o "povo" supostamente quis dizer...

Quanto ao Corbyn, desejo muito que ele se aguente, mas também percebo que ele esteja a pagar o preço por aquilo que julgo ter sido (infelizmente) um grave erro politico.

Abraços

Miguel Serras Pereira disse...

Caros,
a mim quer-me parecer que se a UE peca não é por limitar — ainda bem que o faz — a soberania nacional e outros avatares tribalistas, mas por, no seu funcionamento efectivo, limitar, recalcar, excluir a cidadania europeia. Agora, quanto a pensar que o regresso ao escudo ou a outra moeda "independente" tem potencialidades democratizadoras, francamente, não compreendo o que pode levar um libertário como o Pedro a admiti-lo, sequer como hipótese de trabalho. O que importa, do ponto de vista da autonomia democrática ou da cidadania governante, não é opor o nacional ao global, mas mundializar, universalizar, a participação local de cada um no exercício de um poder político que nos liberte do Estado — como divisão hierárquica estrutural e permanente entre governantes e governados — e da economia política que reproduz,recicla e perpetua a mesma divisão e a mesma hierarquia.
Abraços

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Olá Miguel,

Não compreendo como

"O que importa, do ponto de vista da autonomia democrática ou da cidadania governante, não é opor o nacional ao global, mas mundializar, universalizar, a participação local de cada um no exercício de um poder político que nos liberte do Estado(...)"

e ao mesmo tempo se defenda a existência dum (porto-)Estado a nível europeu, de nome União Europeia, em oposição à existência de Estados "nacionais", ou seja mais circunscritos em termos territoriais. Um Estado é um Estado, com tudo o que de negativo isso implica, independentemente da sua extensão territorial. A única razão que me parece descortinar na defesa da UE versus Estados "nacionais" seria a pretensa necessidade de extinção do nacionalismo, para o qual a UE contribuiria, antes de podermos avançar para a construção dum "(...)um poder político que nos liberte do Estado(...)". No entanto, este raciocínio - precisamos de contrair um Estado europeu, para eventualmente conseguirmos superar o Estado como modo de governação - não só me parece um contra-senso, como assenta na premissas: (1) é possível extinguir o nacionalismo; (2) nacionalismo e Estado são conceitos independentes, podendo ser tratados de forma separada. Estas premissas exigem que se reflectia sobre as origens do nacionalismo.

(cont.)

Pedro Viana disse...

(cont.)

Na minha opinião, na sua origem está o modo como nós, humanos, construímos uma nossa identidade. Tal é feito com base nos laços sociais que vamos desenvolvendo desde o nascimento, e é indissociável da identificação do que constitui o corpo social onde a nossa identidade se exprime. Daqui decorre que, tal como vamos desenvolvendo mecanismos de defesa da nossa identidade pessoal perante ameaças externas, também reagimos defensivamente perante o que percepcionámos como ameaças ao corpo social que sustenta, em parte, a nossa própria identidade, começando pela família, passando pelo grupo de amigos, pela comunidade local, regional, nacional, etnia, sexo, orientação sexual, etc. Portanto, o nacionalismo é apenas um aspecto, potencial, deste processo. E, para ser eliminado necessitaria que fossem eliminados todos os traços distintivos do que é a nacionalidade, que são essencialmente de ordem cultural (apesar dos racistas quererem à viva força que lhe seja associada uma dimensão étnica/racial). Ou seja, para deixar de haver identificação nacionalista teria de deixar de haver, por exemplo, linguas e modos de acção colectiva (ie. tradições) distintas. Será isso possível? Será desejável? Para eliminar o potencial nacionalista temos de eliminar a diversidade cultural e linguística? Para mim a resposta é não, quer na possibilidade quer no desejo que tal aconteça. Mas, então, o nacionalismo é inevitável? Sim, e não. Sim, na sua base, não nas suas consequências. O que já defendi aqui, neste blogue, é que as consequências mais adversas do nacionalismo são exponencialmente aumentadas pela sua manipulação por quem controla o Estado. Portanto, se queremos combater o nacionalismo eficazmente, devemos concentrar esse combate não na miragem duma possível eliminação do nacionalismo na sua origem, mas sim no que potencia as consequências mais negativas desse nacionalismo: o Estado. Voltando à União Europeia, torna-se assim claro que para mim não é uma questão Estado Europeu versus Estado Nacional, mas sim Estado versus ausência de Estado. Deste ponto de vista, o que acho potenciador do fim último que defendemos - "(...)um poder político que nos liberte do Estado(...)" - é tudo o que pode enfraquecer o Estado, qualquer Estado. O nacionalismo, ou suas consequências, vêm por arrasto. Mas enfraquecer a UE não é fortalecer o Estado a nível nacional? Não necessariamente. Porque o que dá força a um Estado são os recursos materiais à sua disposição. A maximização de tal requer uma sintonia entre Estado e elites na posse desses recursos. Ora, neste momento tais elites são trans-nacionais. Daí, os Estados nacionais não terem a capacidade de acção que já tiveram, quando o capitalismo não estava tão globalizado. Daqui decorre, que hoje em dia os Estados nacionais são entidades com uma capacidade de acção muito mais reduzida do que anteriormente, e muito menor do que a teria um Estado (europeu, ou mundial), que estaria necessariamente alinhado, e ao serviço, das elites trans-nacionais antes mencionadas. Daí ver no aprofundamento da UE, a sua consolidação enquanto Estado, um grande perigo, enquanto que a sua descontrução em Estados de âmbito nacional abre as portas a uma crise de des-sincronia entre as capacidades do Estado e o que as elites dele exigem que pode ser aproveitada para des-ligitimizar simultaneamente o Estado, elites e Capitalismo.

Sobre a questão do escudo versus Euro, deixo para um futuro post.

Abraço,

Pedro

joão viegas disse...

Ola Pedro,

Ha dois aspectos muito diferentes nos teus comentarios.

1. Um é a questão de saber se a construção da UE é a resposta definitiva a todos os nossos problemas e um passo significativo para o desaparecimento da noção de Esatdo, que consideras desejavel (o que quanto a mim se discute, pelo menos se formos à raiz do problema, que consiste em saber se queremos continuar a distinguir entre uma esfera privada e uma esfera publica, mas isto é outro debate). Bom, obviamente a UE não é nada disso, nem alias pretende sê-lo. Continuara a haver fronteiras na UE, apenas deslocadas, o que implica que a maior parte das contradições que implicam as fronteiras numa sociedade mundializada permanecerão. Ninguém ignora isto. O que se diz apenas, pelo menos à esquerda, é que a Europa transnacional é um quadro muito mais adequado e promissor para tratar desses problemas, do que uma Europa paralizada numa multitude de Estados nacionais cujas populações não têm outra liberdade concreta do que a de se fechar à realidade que as rodeia. Isto por razões muito diversas, entre as quais o abandono do paradigma nacionalista, mas também, pelo menos na minha opinião, por permitir dar voz activa aos cidadãos no que diz respeito às decisões que realmente têm impacto nas suas vidas, ou seja à escala onde se tomam a maior parte das decisões que interessam hoje a nivel economico, social, fiscal, etc.

Neste aspecto, ando a ver se arranjo tempo para expor as implicações de um verdadeiro "pragmatismo" de esquerda, o que passa (quanto a mim) por compreender uma verdade muitas vezes esquecida : não é o melhor que é inimigo do bom, é antes o bom (o perfeito) que é inimigo do melhor (do aperfeiçoavel).

2. O outro é o de saber se o Brexit abriu perspectivas exequiveis e consequentes para alcançar, não apenas aquilo que defendes, mas mesmo aquilo que os proprios votantes do Exit tinham aparentemente em vista. Ora, independentemente das virtudes possiveis do referendo no céu das ideias platonicas, o que vemos é que neste caso o Brexit obviamente foi um tiro no pé. Isto, mesmo do ponto de vista da famigerada "recuperação da soberania nacional". Com efeito, estamos a assistir em directo ao confisco do sentdo do voto : com todas as probabilidades, o proximo lider conservador vai apenas tentar a todo o custo manter as coisas como estão hoje : uma participação no mercado (o que implicara cedências, em particular quanto à liberdade de circulação). Os arautos de um RU livre e soberano partindo à reconquista do antigo esplendor britânico, começando por expulsar os polacos e os romenos, esses, fugiram. Portanto o povo foi de novo ludibriado e, desta feita, não parece ter sido pelas elites de Bruxelas...

Abraço

Pedro Viana disse...

Olá João,

Muito rapidamente, e sobre o ponto 2. O que mais tenho realçado no caso do referendo britânico é o facto do Bremain manter o status quo, enquanto o Brexit o alterar. Ou seja, o simples facto do Brexit exigir a alteração do status quo, o que não interessa de todo à elite que conta, a quem realmente detém o Poder, introduz uma perturbação no sistema que pode ser aproveitada em benefício de quem o queira alterar. Nada mais. Em particular, pode ser utilizada num sentido que é a meu ver progressista, ma também num sentido reaccionário, não nego. E mesmo que quem detém o Poder consiga minimizar os estragos, eles estão feitos e não são reparáveis. Basta ver que há uma contradição insanável entre a necessidade (mais do que um desejo) dessas elites duma maior integração dos Estados Europeus, de modo a tornar mais capaz o Estado trans-nacional de que precisam, e o que uma maioria qualificada da população britânica exigiu em referendo. Em particular, caso essas elites tentem "deixar tudo na mesma", como sugeres que tentarão, e em que também acredito, ver-se-ão a braços com um aprofundamento da sua des-legitimização perante uma fracção significativa da população. E há que notar que qualquer alteração, por via interna, dum sistema político e/ou sócio-económico requer que, em simultâneo, o sistema vigente seja des-legitimizado (deixe de ser percepcionado como capaz de responder perante os anseios das populações) e um outro sistema se afirme como alternativa credível. Em resumo, as consequências do Brexit afectarão a legitimidade do sistema vigente e/ou a sua viabilidade, e portanto a sua sustentabilidade. O potencial para a mudança é criado. Há que o aproveitar. Permanentemente na defensiva não vamos a lado nenhum.

Abraço,

Pedro

joão viegas disse...

Ola Pedro,

Bom, tudo pode sempre vir a desembocar numa forma de progresso e ha males que vêm por bem. E também não ignoro as teorias do Gramsci sobre o efeito salutar da crise, etc.

Mas olhando com atenção para o caso do Brexit, temo que a situação não seja exactamente como dizes. Na realidade, a decisão de sair é que se arrisca a "deixar tudo na mesma" : um mercado europeu com o RU mais dentro do que fora (quem acredita que eles vão restabelecer pautas, ou obstaculos à livre circulação de capitais ?), mas sem perspectivas de aprofundamento da democracia politica, a tal que é necessaria para que o mercado se dote de regras sociais e fiscais uniformes e para que seja possivel, não so redistribuir, mas muito simplesmente reequilibrar (poderiamos calcular quem suporta, hoje, uma carga fiscal maior, se são os paises pobres como Portugal, que precisariam de modernizar as suas estruturas produtivas, ou se são a Alemanha ou os Paises Baixos...).

Por mim, avançar, so pode significar uma de duas coisas : ou destruir completamente a união europeia e criar espaços para novas formas de cooperação entre os paises europeus completamente diferentes do que existe hoje, ou então aprofundar o que existe, indo no sentido de dar uma verdadeira legitimidade democratica às instituições e às politicas europeias, fazendo com que os ecrãs nacionais deixem de se meter pelo meio, em prejuizo da transparência e da responsabilidade politica dos decisores. As politicas orçamentais, hoje, são definidas em concertação a nivel europeu e ninguém pergunta verdadeiramente aos europeus se os beneficios do mercado para as empresas dos paises mais ricos devem ser em parte redistribuidos para as economias mais débeis. Se os europeus fossem confrontados realmente com o problema como ele se põe, duvidas que o eleitor alemão ou holandês decidiria que deve haver justiça e redistribuição ? Eu não. Mas o que se passa hoje é que pedimos, de maneira perfeitamente hipocrita, ao cidadão alemão que vote para preservar a sua reforma, e ao cidadão português que vote em quem vai saber melhor negociar com os politicos alemães...

Portanto a questão é saber se o Brexit pode favorecer uma das duas alternativas acima. Quanto a mim, é obvio que não pode... Não favorece a segunda, mas também não vejo como possa resultar na primeira. Basta ver quem fez campanha pelo Exit : politicos conservadores, que dizem, a Europa como mercado livre, OK, agora impostos e regras sociais é que nunca e, se possivel, polacos malcheirosos também não...

Se estas numa carroça que não anda tão bem nem tão depressa como gostarias, podes tentar ajudar o condutor, podes ver se empurras para ajudar, etc. Agora descer da carroça e dar uma chicotada aos cavalos, acho que não vai resolver grande coisa...

Abraço