03/01/17

O recto, o correcto, o político e o jurídico



Feliz 2017 a todos os camaradas e leitores do Vias.

Tanto quanto percebo ao ler este post, acabámos de assistir a mais uma polémica em torno dos habituais paradoxos sobre liberdade de expressão, censura e proibição da censura.  Desta vez, ao que parece, um humorista queixou-se de não poder falar em “mariquices” sem qualquer intenção malévola, com o medo que lhe caiam em cima o Carmo e a Trindade, como veio inevitavelmente a suceder a seguir.

Sobre a liberdade de expressão, os seus limites e as suas implicações, julgo que o essencial foi dito e não há muito a acrescentar. Parece-me óbvio que o humorista é livre de escrever o que escreveu, e não vi aliás ninguém mover-lhe uma acção judicial. Parece-me não menos óbvio que os leitores do humorista devem ser livres de o criticar, inclusive por ele ter escrito o que escreveu, ainda que esses críticos sejam a maioria e ainda que eles tenham carradas de razão. Quem considera que a crítica é uma forma de opressão, ou mesmo de pressão, esquece-se daquilo que ela é por essência : um apelo à convicção de quem é interpelado, apelo que supõe, por hipótese, a plena liberdade do criticado de ficar convencido, ou não…

Já me causam mais peplexidade as considerações do post do Miguel e a discussão que se iniciou na caixa de comentários. Com efeito, se exceptuarmos os casos de algumas ilhas desertas e de uma ou outra obra do Rousseau, as leis políticas e o direito não nascem no deserto por geração espontânea. Aparecem sempre onde existe já uma sociedade poli(cia)da ou, se quisermos usar o termo latino, civilizada, o que supõe a existência de normas de comportamento social, ou seja aquilo a que chamamos uma moral ou uma ética. Ora quem fala em normas fala necessariamente em imposições, em regras que as pessoas são obrigadas a seguir sob cominação de sanções, as quais revestem formas diversas que vão desde a simples reprobação pública à exclusão violenta do grupo. A própria liberdade individual, que consideramos hoje a base do nosso ordenamento político, só existe e só pode subsistir na medida em que é garantida por regras e por sanções. Sem estas últimas, a liberdade seria uma mera ficção…

Pergunta o Miguel “será possível uma situação em que há censura social mas não restrições legais?”. Não só é completamente possível, mas é o que começa por suceder em qualquer sociedade. É precisamente para corrigir os excessos que nascem desta situação que apareceram (nalgumas sociedades apenas) as leis públicas e o direito.  Com efeito, a lei e o direito têm como objectivo introduzir algum critério e alguma medida, inspirando-se em considerações de justiça e de igualdade, na definição, na aprovação e na sanção das regras colectivas.  O mérito principal do filósofo inglês H. L. A. Hart (1907-1992) foi mesmo o de ter mostrado com perspicácia e elegância que as regras jurídicas caracterizam-se por serem secundárias, na medida em que são regras sobre regras, cuja função é instaurar processos de definição e de modificação das nossas regras éticas ou morais (que ele define como sendo regras primárias).

Quando perdemos de vista o que acabo de expôr, deixamos de compreender como se articulam a moral e o direito. Fazemos como se se tratasse de duas esferas completamente separadas. Isto, julgo eu, é extremamente perigoso. Penso mesmo que podemos atribuir as atrocidades cometidas no século XX pelos regimes totalitários a um erro desta natureza.

Muito pelo contrario, as leis e o direito são a continuação e o desenvolvimento das regras éticas e especialmente da regra que manda que respeitemos as liberdades da pessoa dentro da sociedade. Pode acontecer, como é óbvio, que as regras jurídicas sejam desvirtuadas ou pervertidas e que acabem, na prática, por servir de instrumento de opressão por parte de uma casta, ou de uma classe, ou de interesses particulares, etc. Nesse caso, são más e merecem ser modificadas. Os exemplos não faltam. Mas isto não justifica de maneira nenhuma que percamos de vista a sua primeira finalidade e a sua essência. Afinal, a esmagadora maioria das lutas sociais fizeram-se e continuam-se a fazer para obter direitos, e eles ainda são, até ver, a melhor garantia que possamos ter de uma justiça efectiva.

O Miguel entra depois numa discussão interessante, que consiste em saber se o direito e as leis pressupõem ou implicam necessariamente a existência do Estado. Não sei até que ponto a questão é mais do que terminológica. Se entendermos por “Estado” uma organização de poderes com vincadas características monopolistas, tais como a conhecemos desde sensivelmente o século XVI (época em que a palavra começou a usar-se neste sentido, com Maquiavel e Jean Bodin), então julgo que a afirmação é historicamente errada. Com efeito, existem leis e regras jurídicas muito antes dessa época. De resto, mesmo hoje, poderíamos encontrar ainda (mesmo dentro das nossas sociedades “estatais”) inúmeros exemplos de ordenamentos pluralistas, onde coexistem várias fontes de regras jurídicas. Agora se identificarmos o “Estado” com qualquer tipo de organização da força colectiva por forma a garantir a efectividade de regras sociais, então concluiremos que não há direito sem Estado… Na minha opinião, a questão do Estado só vem atrapalhar e impede de ver o que poderia parecer óbvio : o direito, ou seja as regras e as leis decididas e sancionadas publicamente em nome de todos e para todos, têm precisamente em vista lutar contra os abusos que o Miguel receia.

No caso da polémica recente a confusão deriva do facto de uns e outros terem o mesmo interesse em fazer alarde e de não hesitarem em servir-se dos paradoxos evocados acima para conseguir o seu objectivo. O humorista queixa-se de não ter a liberdade de fazer… o que ele faz descaradamente no texto, o que mostra sobejamente que ele tem plena consciência de ser completamente livre. O truque retórico de se declarar impedido pelo medo de melindrar os seus “adversários” não passa disso mesmo : um truque retórico. Eu também não lhe vou chamar espertalhão, porque sei que ele se pode ofender… Do lado dos indignados, temos uma hipocrisia simétrica. Fingindo-se ofendidos, não sugerem que se sancione a “agressão”, muito menos ainda que passemos a punir esse tipo de  comportamentos (o que seria um privilégio indefensável). Apenas se improvisam polícias de opereta e, no fundo, fazem-no porque isso lhes interessa. E também porque o humorista, que neste caso até é amigo,  não os agrediu verdadeiramente. Pelo contrário, reconheceu à partida uma evolução da regra social (de mera praxe, boa-educação ou cortesia) e proporcionou-lhes uma boa oportunidade de explicar os méritos desta evolução. “Nunca mais te falo, mas nunca nunca mais, ouviste ? ouviste bem ?

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