04/08/17

Dois ou três reparos de fundo a uma notável crónica de Paulo Tunhas

Paulo Tunhas voltou a publicar uma crónica notável no Observador. Tentando confirmar um pouco este juízo, passo a interrogar-me brevemente, a seguir, sobre alguns dos pontos da sua argumentação.

Não tenho, evidentemente, qualquer problema com a  ideia da "criação humana" que, tal como eu próprio, Paulo Tunhas vai buscar a Castoriadis e adopta como ponto de partida para qualquer interrogação lúcida da sociedade e da história, qualquer questionamento lúcido das instituições. As minhas dúvidas surgem antes na oposição ou dicotomia que Paulo Tunhas detecta entre liberdade e igualdade, como princípios rivais da justiça, para afirmar a seguir que o princípio da liberdade tende a ser o da direita e o de igualdade o da esquerda, associando ainda o primado da igualdade ao estatismo e o da liberdade ao do liberalismo. É verdade que Paulo Tunhas se dá conta do que esta oposição tem de falso, mas sem tirar da denúncia da sua natureza equívoca conclusões de maior. O que é ainda mais estranho dado o facto de Castoriadis, justamente, ter visto também como poucos e exposto com inexcedível clareza a implicação circular que faz com que liberdade e igualdade se garantam, pressuponham e potenciem uma à outra.

Com efeito, se a liberdade deve ser igual para todos (o que não significa que todos façam a mesma coisa com ela), tem como condição necessária e quase-suficiente a igualdade efectiva em termos de poder e participação no poder. Assim, dizer que uma tirania pode ser igualitária, ou o pode ser a ditadura totalitária de um partido, é um absurdo: que igualdade há, como perguntava Castoriadis, entre quem tem o poder, não só de dispor dos "meios de produção" e dos comandos macro e micro do sistema económico, e quem pode ser enviado para um campo de concentração ou ser passado pelas armas por fazer greve ou nem isso contra o poder do partido? É por isso que a democracia, ou a autonomia democrática, tal como Castoriadis a pensava, não exige mais a liberdade do que a igualdade nem vice-versa. Exige, sim, a possibilidade de cada cidadão participar igualitária e responsavelmente nas decisões colectivas que afectam as suas condições de existência como a de todos os demais. É ao regime que garanta e recrie essa possibilidade — substituindo o poder regular e responsável dos cidadãos organizados ao poder do Estado ou ao poder cada vez mais soberano e estatal de de instâncias várias da economia política dominante — que, sempre segundo Castoriadis, deveríamos reservar o nome de democracia — e, pelo meu lado, é para esse regime que proponho o nome de "cidadania governante".

Chegados aqui, o problema é que, neste seu texto, Paulo Tunhas, assinalando embora a insuficiência da oposição esquerda versus direita, não assume claramente que critérios devem completá-la ou substituí-la, como pontos de referência, de orientação e definição política. Para mim, esse critério é o que chamei o "critério da democracia", o critério da autonomia democrática, entendida nos termos que acabo de esquematizar. Seria interessante que Paulo Tunhas apresentasse mais explicitamente o seu  — até para que o debate das questões fundamentais que levanta pudesse continuar e generalizar-se.

4 comentários:

joão viegas disse...

Ola Miguel Serras Pereira,

Para mim, a raiz da diferença esta na efectividade (ou seja, na exigência de liberdade e de igualdade "substanciais" e não meramente "formais"). A esquerda nunca foi "contra" a liberdade. Nunca a restringiu senão para permitir que todos a exerçam efectivamente. Isto pelo menos em teoria, na pratica sabemos que a coisa descambou muitas vezes.

A liberdade formal não é liberdade nenhuma, ou antes é apenas liberdade daqueles que têm mais poder, uma vez que este esta desigualmente repartido (se não fizermos nada contra isso). Mas a direita contenta-se com ela. Uma liberdade de papel... Ja, se exigirmos que a liberdade seja substancial, e que beneficie a todos ( exigência de igualdade), adoptamos necessariamente uma atitude de esquerda.

O mesmo raciocinio pode ser feito a partir da igualdade. Uma igualdade formal (a igualdade "de direitos" entendida como mera igualdade de todos os cidadãos perante a lei) beneficia apenas àqueles que têm poder para usa-la, como apontas muito bem no teu texto. Se quisermos que a igualdade seja substancial, que tenha um verdadeiro conteudo, temos necessariamente que prever que ela se traduza por uma liberdade material ao alcance de todos, liberdade substancial, que não consiste na faculdade de fazer aquilo que nos mandam, mas na faculdade de escolher aquilo que fazemos. Esta distinção, entre uma igualdade efectiva e uma igualdade meramente formal devia, em meu entender, servir para separar as aguas entre os movimentos que se reclamam da esquerda. Podemos facilmente constatar que os autoritarismos, que são perversões dos ideais de esquerda, pecam sempre por ai : são incapazes de garantir uma igualdade efectiva, contentam-se com uma igualdade meramente formal.

Por isso, também, ha espaço para alcançar resultados a partir dos valores afirmados pelas pessoas que se reclamam da direita. O Paulo Tunhas, e muitos outros, enchem a boca com a palavra "liberdade", mas a verdade é que não sabem onde meter-se cada vez que se lhes reclama que esta liberdade seja verdadeira, substancial, efectiva...

E finalmente, pessoalmente, não tenho problema algum em aceitar que a igualdade e a liberdade são os dois lados da mesma moeda. Quem pretende separa-los é a direita, com a ideia fantasmagorica que uma poderia ameaçar a outra, quando a verdade é que elas so se podem neutralizar se forem formais, e se forem substanciais, reforçam-se, nutrem-se uma da outra. Isto é que falta dizer no texto do P. Tunhas...

Abraço.

Miguel Serras Pereira disse...

Caríssimo João, estou de acordo com quase tudo o que dizes. Ressalvo, contudo, que, à esquerda, temos visto demasiadas vezes — e continuamos a ver — gente que, quando denunciamos certos regimes antidemocráticos por excelência, fazem valer que, nesses países, as restrições à liberdade são compensadas por uma maior igualdade. Claro que se trata de um absurdo lógico e de uma falsificação factual — Castoriadis mostrou-o muitas vezes e como poucos —, mas a verdade é que foi assim que se procurou justificar o "socialismo realmente existente" do Leste da Europa, da China ou da Rússia, e que o mesmo argumento é invocado hoje em defesa do regime venezuelano de Maduro ou, há pouco tempo ainda, como legitimação do culto da personalidade de líderes como Chavez ou Fidel. É por isso que boa parte da crítica dirigida à esquerda por Paulo Tunhas é certeira e que a principal crítica que lhe podemos fazer a ele é não olhar com os mesmos olhos para a direita. E, por fim, é por isso também que prefiro cada vez mais falar de cidadania governante, autonomia democrática ou participação igualitária, em vez de recorrer ao termo "esquerda", quando quero separar as águas. Suponho que nada do que assim explicito te desagradará demasiado.
Abraço

miguel(sp)

joão viegas disse...

Ola Miguel,

E' um facto que a ideia do "socialismo real", que se reivindica da distinção que faço, foi usada para encobrir excessos da pior espécie, e que ainda o é. Isto é obviamente uma preocupação perfeitamente legitima. No entanto, como acontece com todos os argumentos puramente retoricos e propagandistas, isto so me parece possivel porque não ha (suficientemente) quem exija que se prestem contas à luz dos principios. Como dizes muito bem, é insustentavel que houvesse mais "igualdade" efectiva na Roménia, ou em Cuba, ou hoje na Venezuela. A não ser que se tenha da igualdade uma visão completamente deturpada, reduzindo-a à faculdade de "comer e calar". Mas, neste caso, teriamos de aceitar que os regimes fascistas, incluindo o regime nazi, eram altamente "igualitarios".

A mesma critica pode ser feita ao "liberalismo" de que se reclama a direita, que logo de inicio, põe de lado uma parte consideravel do campo semântico da palavra "liberdade". Houvesse quem confronte os nossos liberais com a efectividade dos valores que eles propugnam, e teriamos provavelmente, não apenas uma sociedade mais livre, mas também uma sociedade mais igualitaria.

Eu sou pragmatico, como sabes, e estaria perfeitamente disposto a abrir mão das ideias de "esquerda" e "direita" se isso trouxesse beneficios. Mas não sei se é justo, e clarividente, abandonar a ideia de que, ao contrario do que diz o Tunhas (inspirando-se em Tocqueville), a esquerda não nasceu de uma paixão doentia pela igualdade, mas antes de uma preocupação mais importante, a de fazer com que a liberdade E a igualdade fossem AMBAS efectivas, e não apenas formais. A direita não pode dizer a mesma coisa, nem sequer se nos cingirmos à liberdade. Com efeito, vemos que, quase sempre, ela se reivindica de um conceito pobre e tosco de liberdade, sem aprofundar a noção e fugindo a sete pés logo que alguém procura medir qual é a liberdade efectiva. Isto em teoria como na pratica. Ha "liberais" genuinos no discurso, mas os movimentos politicos de direita nunca estiveram na vanguarda para conquistar autênticas liberdades. Isto é notorio no campo dos costumes.

Portanto não posso deixar de criticar o texto de P. Tunhas na medida em que a visão que ele propõe da oposição entre esquerda e direita é orientada e eivada. O discurso do P. Tunhas é o do centrão : ninguém esta certo, todos têm um pouco de razão, devemos saber reconhecer que a igualdade é por vezes uma ameaça (subentendido : hoje é o caso, tiram-me muita liberdade atravês dos impostos) da mesma forma que reconhecemos que a liberdade não pode ser total (ninguém contesta que é um abuso chicotear um trabalhador que ameaça fazer greve, quando temos a policia para fazer isso). Eu ainda sou radical, no sentido em que acredito que a igualdade é uma condição absolutamente necessaria para alcançar a verdadeira liberdade, e que a liberdade deve ser uma componente essencial da igualdade. No dia em que o P. Tunhas estiver comigo para defender estes principios, então, sim, abandonarei sem qualquer escrupulo a bandeira da "esquerda". Mas sei que é melhor esperar sentado.

Dito isto, concordo completamente com o que dizes, que interpreto como uma vontade de ultrapassar ideias ocas ("formais") e muitas vezes inquinadas em razão do peso da historia (que deve dar que reflectir, isto não esta em causa), em favor dos conceitos substanciais pelos quais nos devemos bater : autonomia democratica (liberdade exercida pelo povo para o povo), cidadania governante (que implica que o governo seja exercido por cidadãos responsaveis) e participação igualitaria (a que eu chamaria : liberdade que não seja vazia).

Abraço forte

Miguel Serras Pereira disse...

Caríssimo João, estou uma vez mais de acordo com o essencial. Eu não digo que a esquerda e a direita não existem ou que são a mesma coisa. Historicamente, seria absurdo. Mas parece-me que, quando digo sem mais, que alguém é de esquerda, deixo politicamente às escuras quem me ouve e fica sem saber em que sentido o fulano assim rotulado entende e investe a liberdade e a igualdade. Robusto abraço

miguel(sp)