28/11/17

Re: Esquerda e Direita (V)

 Continuando com o artigo de Rui Albuquerque:
Depois, corolário necessário dos dois anteriores postulados, a solene certeza de que existe sempre uma elite dirigente que zela por todos nós, que intervém para corrigir o que de mal fazemos e que cuida da nossa felicidade. A esquerda e o socialismo partem sempre da necessidade, muito platónica, de um «governo de sábios», a confiar com algumas restrições, enquanto que a direita prefere a máxima popperiana de um «governo de homens», a manter sob absoluta reserva.

Agora, esta parte parece-me um quase completo disparate - se alguma coisa, acho que, quase por definição, quem defende (tanto na parte de considerar desejável, como na de considerar inevitável) o governo pelas elites é a direita - e não me refiro apenas à velha direita conservadora pró-monarquia e pró-aristocracia e à velha direita liberal pró-sufrágio censitário: mesmo o centro-direita moderno tende, em comparação com a esquerda, a cultivar mais a imagem do "governo forte que não cede a pressões", a fazer a apologia das virtudes da democracia representativa sobre a democracia direta (aliás, o centro-direita parece-me a ala política mais avessa ao "poder da rua", em contraste com as tendências populistas tanto da esquerda como da extrema-direita), e a confiar mais em entregar poderes decisórios a "especialistas" com legitimidade democrática remota (exemplo - a direita tende a defender mais entusiasticamente a autonomia dos bancos centrais); já a esquerda gosta mais de cultivar o discurso da "participação" e do "diálogo" (e mesmo as ditaduras de esquerda gostam de fingir que são democracias, usando a torto e a direito o adjetivo "Democrático", e dizendo sempre que tudo o que decidem foi previamente "discutido" nas "organizações de massa"; já as de direita - mesmo que ocasionalmente também digam que são "democracias orgânicas" - tendem a ser mais honestas e a dizer abertamente que são a favor das elites e contra a lei do número) - veja-se mesmo a tendência dos partidos de esquerda para darem aos seus líderes nomes que deem a entender que os líderes não são líderes mas apenas a pessoa que trata dos papéis, e que as decisões serão tomadas por uma direção coletiva: primeiro o normal era o "secretário-geral" (enquanto nos partidos de direita esse título costuma ser atribuído ao responsável pelo aparelho, nos de esquerda a regra é ser o título do líder); a partir de certa altura, os novos movimentos de esquerda que surgiam passaram a ter "coordenadores"; e a partir do momento em que "secretário-geral" e "coordenador" começaram também a ser vistos como um sinónimo de "líder", outros nomes têm entrado na moda, como "porta-voz".

Eu dá-me a ideia que o que Rui Albuquerque quer dizer é que a esquerda é mais a favor do governo se meter na vida das pessoas - mas isso é mais um sinal de coletivismo do que de elitismo, já que a esquerda é também mais a favor das pessoas se "meterem na vida" do governo; inversamente, a direita pode defender mais que o governo não se deve meter muito na vida das pessoas (e talvez mais importante, na vida das pequenas sociedades - comunidade local, família, empresa, etc.), mas ao mesmo tempo também é mais a favor das pessoas comuns não se meterem muito nos assuntos do governo, ou se calhar talvez possamos dizer que por regra a esquerda gosta mais do Estado do que do Governo (mesmo que até posso gostar do governo que existe num dado momento, o seu instinto é sempre pensar em termos de "o povo" contra o "poder instituído"), e a direita gosta mais do Governo (mesmo que não goste do governo que exista num dado momento, gosta de líderes, de autoridade, de haver "alguém que mande nisto") do que do Estado.

Em muitos aspetos,  o ideal da esquerda quase que seria um estado sem governo, governado por uma rede de "conselhos operários", pelo "poder popular de base", pela "vontade geral" ou coisa parecida (e em muitos aspetos o que os marxistas chamam "abolição gradual do Estado" até me parece mais a abolição do governo do que do estado, embora haja espaço para muita discussão - semântica? - neste ponto, e sobre o significado especifico da palavra "Estado"); o inverso, um governo sem estado, é mais díficil de imaginar o que seja, mas o mais parecido talvez sejam aqueles legitimistas (o caso mais visível talvez seja os carlistas espanhóis, com o seu slogan "Deus, Pátrias, Foros, Rei", mas também se nota um pouco disso nos jacobitas escoceses, na Ação Francesa e nos "nossos" miguelistas) que defendiam ao mesmo tempo o "rei absoluto" e as "liberdades locais" (ou seja, que o Estado central deveria interferir o mínimo nos assuntos das comunidades locais, mas que nos poucos assuntos que fossem decididos centralmente, o rei deveria ter o poder supremo, em vez de estar sujeito a parlamentos ou a constituições escritas). Versões mais soft poderão ser Pinochet ou até Thatcher - por um lado ditador (Pinochet) ou líder com a tal fama de líder-forte-que-não-cede (Thatcher), e que por outro reduziram o tamanho do Estado (ou, pelo menos, na economia - diga-se que eu até acho que havia algo de "jacobino" no thatcherismo, mas isso fica para outra altura...).

Mesmo na política externa muitas vezes pode ver-se essa diferença de atitudes; p.ex., nos EUA, os Democratas - apesar de tudo, o menos de direita dos grandes partidos - normalmente são adeptos do multilateralismo: intervir nos assuntos mundiais (e dos outros países), mas dando sempre a ilusão de agirem em nome da "comunidade internacional", de preferência sempre com resoluções da ONU ou coisa parecida; já os Republicanos oscilam entre o isolacionismo e o unilateralismo (e no caso do atual presidente, a oscilação parece ser mesmo dentro do cérebro dele, ente uns dias e outros): por um lado talvez sejam mais retinentes a se meterem em assuntos internacionais, mas por outro, quando se metem, são mais adeptos de ações unilaterais, sem grandes negociações e sem ligar muito à ONU ou à "Velha Europa"; a mim parece-me que isto não é mais que a transposição para a ordem internacional das atitudes tradicionais da esquerda e da direita na ordem interna.

Já agora, há uma frase de Raymond Aron, a respeito de outra de Tocqueville (dois dos talvez poucos liberais-conservadores franceses) que acho que no fundo espelha a diferença fundamental entre as duas atitudes:
T: Assim duas revoluções de sentido contrário parecem pois operar-se nos nossos dias, um enfraquece continuamente o poder, a outra reforça-o sem descanso. Em nenhuma outra época da nossa história ele pareceu nem tão fraco, nem tão forte.

R.A.: A antítese é bela, mas não se encontra formulada com exatidão. O que Tocqueville quer dizer é que o poder está enfraquecido e que a sua esfera de ação se alargou. Na realidade, o que ele visa é o alargamento das função administrativas e estatais, e o enfraquecimento do poder político de decisão. A antítese teria sido menos retórica e menos impressionante se ele tivesse oposto por um lado o alargamento e o enfraquecimento por outro, em vez de opor, como fez, reforço e enfraquecimento. (Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 1991, página 252, traduzido pelo nosso Miguel Serras Pereira)
Eu diria que esse caminho, no sentido simultâneo do alargamento e enfraquecimento do poder, é o que tipicamente a esquerda quer percorrer; e a direita tende a preferir o caminho contrário - fortalecer e restringir o âmbito do poder do Estado.

[Um post que escrevi há 12 anos, dizendo algo parecido com o que disse acima, e argumentando que essa aparente contradição interna, tanto da esquerda como da direita, não é tão contraditória, se pensarmos em termos de otimismo versus pessimismo]

É verdade que há exceções a esta dicotomia - anarquistas, comunistas ortodoxos e fascistas escapam todos, de uma maneira ou de outra, a este esquema (os primeiros porque são tanto contra o Estado como contra a existência de governantes, os segundos e terceiros porque defendem tanto o Estado interventor como - os terceiros abertamente, os segundos de forma envergonhada - o exercício do poder por uma elite restrita), mas acho que a regra geral é mesmo assim "Esquerda - um estado que se mete em muitas coisas e em que muita gente participa na governação; Direita - um estado que se mete em poucas coisas e em que pouca gente participa na governação".

Aliás, há uns anos (penso até que numa "conversa" com Rui Albuquerque nos comentários do Blasfémias ou num sítio parecido) eu apresentei Anton Pannekoek como o mais à esquerda possível; porquê Pannekoek e não, digamos, Lenin ou Bakunin (dito isto, Rosa Luxemburgo se calhar poderia ser também um bom exemplo) ? Em larga medida, porque o "comunismo de conselhos" é o mais parecido com a versão extrema de um estado (mesmo que não necessariamente com o nome "estado") que se mete em tudo - ou pelo menos em toda a atividade económica - e em que simultaneamente toda a gente governa o estado; já tanto o leninismo como o anarquismo se "desviam" nalguns pontos: o primeiro pelo elitismo implícito (ou mesmo explícito) no vanguardismo; o segundo pelo seu federalismo e até individualismo.

Um aparte: eu pessoalmente até acho que o "centralismo democrático" (sim, é uma expressão de Lenin, mas acho que até se aplica melhor a muita da esquerda não-leninista, e entre os leninistas mais aos anti-Moscovo) da esquerda tradicional tem grandes contradições internas, e o "corpointermediarismo" elitista da direita tradicional também tem algumas, e que se um dia haver uma "batalha final" será provavelmente entre a esquerda anarquista e a direita fascista - "CNT" contra "Falange"; no entanto, esse ponto não é muito relevante para esta série de posts, que é sobre o que eu considero que a direita e esquerda são, não sobre o que acho que deveriam ou irão ser.

0 comentários: